Segredo no Tacho, Sabor no Pão: A História da Bifana

Segredo no Tacho, Sabor no Pão: A História da Bifana
Uma bifana típica de Vendas Novas é servida no tradicional papo-seco tostado. A receita leva carne de porco tenra, frita num molho secreto com alho, louro, vinho e especiarias.

Quando se fala da origem da bifana, muitos apontam imediatamente para o Alentejo — mais precisamente, para a cidade de Vendas Novas.

Ninguém sabe ao certo quem foi a primeira pessoa a colocar febras de porco num papo-seco estaladiço, mas há um consenso saboroso: foi algures em Vendas Novas, há várias décadas, que esta iguaria ganhou forma. As bifanas de Vendas Novas tornaram-se tão emblemáticas que o próprio município registou a marca “Bifanas de Vendas Novas” em 2011. A cidade orgulha-se do título de capital da bifana.

A história popular aponta para a década de 1960. 1968 é frequentemente citado como o ano de nascimento da receita original, num modesto café — o lendário Café Boavista, situado junto à Estrada Nacional 4 (EN 4).

Numa localização estratégica — a EN4 era a principal via entre Lisboa e o interior alentejano, muito antes das autoestradas — e Vendas Novas, a porta de entrada do Alentejo. O café tornou-se paragem obrigatória para camionistas, vendedores e famílias em viagem. Era ali que “matavam o bicho” com uma bifana acabada de fazer.

Café Boavista, Vendas Novas, Estrada Nacional 4

O Café Boavista ainda hoje existe e mantém a tradição. Maria Clara Isabel tomou conta do negócio, ao lado do seu marido, Manuel Cardante, há mais de 40 anos. No início, serviam “de tudo um pouco” - de feijoadas a caracóis - mas o apelo da bifana falou mais alto.

A procura era tanta que deixei o resto de lado”, contou ao Expresso em 2017. 

Foi então que reformulou a ementa e apostou tudo nas bifanas, com base numa receita familiar.

Hoje, ainda se batem os bifes de lombo até ficarem tenros, fritam-se no molho especial -  em frigideiras desenhadas especificamente para bifanas -  e servem-se em papo-seco torrado. Quando o Expresso lhe perguntou pelo resto da receita, ela sorriu e respondeu, “O resto é segredo”. 

Maria Clara Isabel, antiga proprietária do Café Boavista. Apelidada por muitos como a “rainha das bifanas”

Cada café guarda o seu toque, mas a base é comum: vinho branco, alho, louro e, talvez, um toque de pimentão ou piripíri. No fundo, o segredo está nas mãos de quem as faz.

Vendas Novas transformou-se numa verdadeira “Meca” da bifana. Estima-se que, só na cidade se vendam cerca de 3.000 bifanas por dia — quase um milhão por ano.

Em 2024, as festas do concelho celebraram esse orgulho com criatividade: foi lá que se cozinhou a “Maior Bifana do Mundo”, com um pão de 15 metros feito pela padaria local e cerca de 32 kilos de bifanas de vários cafés da cidade. Estima-se que cerca de 1000 pessoas provaram esta gigante bifana.

A Maior Bifana do Mundo, sábado 9 de Setembro de 2024

Curiosamente —  numa poesia triste — Maria Clara Isabel, antiga proprietária do Café Boavista,  faleceu no sábado em que a cidade cozinhava a “Maior Bifana do Mundo”. Tinha 69 anos. Guardiã de décadas de tradição no Café Boavista, partiu no mesmo dia em que Vendas Novas celebrava o seu mais famoso petisco. 

A coincidência tocou profundamente a comunidade local, que reconhece nela uma das grandes responsáveis por levar o nome da bifana além fronteiras. O seu legado, tal como o aroma da bifana quente, permanecerá no ar por muito tempo.

Histórias, curiosidades e lendas da bifana

Nenhuma boa história gastronómica fica completa sem umas pitadas de lendas e curiosidades. E a bifana tem várias!

Antes de Vendas Novas reclamar o trono da bifana, já se falava das famosas bifanas de Casa Branca — uma aldeia que nasceu com o comboio, no concelho de Montemor-o-Novo.

A estação de Casa Branca, inaugurada em 1857, no tramo Vendas Novas - Évora, hoje conhecida como Linha do Alentejo (Norte-Sul) . Catorze anos depois, em 1871, foi inaugurada a Linha de Évora (Este-Oeste). 

Casa Branca, aldeia ferroviária, concelho de Montemor-o-Novo, freguesia de Santiago do Escoural

Nos tempos áureos dos comboios a vapor, a estação de Casa Branca foi, durante décadas, paragem obrigatória nas ligações entre Lisboa e o Alentejo profundo.  Foram construídas casas para os ferroviários, uma escola, e surgiram cafés e restaurantes para quem esperava a chegada dos comboios.  Uma terra de passagem, mas com sabores que ficavam. 

Conta a lenda que, num desses lugares junto à estação, uma mulher de avental florido e mãos de trabalho servia o que havia: pão, vinho e carne. Mas um dia, a carne tinha vindo dura. “Assim ninguém mastiga”, murmurou ela. Pensou, pegou no vinho branco - que por ali nunca faltava - esmagou dentes de alho com um murro bem dado, juntou louro, um pouco de banha e deixou a carne a amolecer no molho, em lume brando, como quem conta segredos ao fogão. O cheiro espalhou-se pela rua como se fosse anúncio de festa. 

Mais tarde, já com a tradição firmada, Maria Eugénia, começou, há mais de 50 anos a servir bifanas num pequeno café de azulejos na parede, junto à estação.

Café de azulejos na parede onde, durante, 40 anos, Maria Eugénia, serviu bifanas
“Vinha muita gente nos comboios, soldados,  marinheiros… muita gente.. o comboio parava um quarto de hora e eu cheguei a vender uma centena de bifanas”, recorda Maria Eugénia

As bifanas de Casa Branca chegaram a ser afamadas. Infelizmente, com o declínio do movimento ferroviário, a tradição foi-se perdendo; hoje já quase não se servem bifanas nessa estação - foram trocadas pelas sandes e bolos. Ficou a memória estampada nas conversas dos que a viveram. 

Mas então, Casa Branca ou Vendas Novas? Afinal, onde nasceu a bifana? 

A origem da bifana, como tantas receitas populares, está envolta em mistério, memórias e tradição oral. Duas localidades disputam — sem rivalidade, mas com orgulho — o berço desta iguaria portuguesa:

• Vendas Novas é considerada o berço “oficial” da bifana. Foi lá que, nos anos 1960, a receita ganhou forma moderna e reconhecimento nacional, especialmente no Café Boavista. A cidade registou a marca “Bifanas de Vendas Novas” em 2011 e assumiu com orgulho o título de capital da bifana.

• Casa Branca, pequena aldeia ferroviária de Montemor-o-Novo, tem histórias ainda mais antigas, contadas por quem lá viveu: bifanas vendidas junto à estação desde os tempos dos comboios a vapor, feitas com carne de porco amolecida em vinho, alho e louro.

Não há registos formais que comprovem uma origem única. O mais provável? Que a ideia de pôr carne de porco no pão tenha surgido em vários pontos do Alentejo ao mesmo tempo — em cafés de estrada, estações de comboio e tascas humildes.

No fundo, a bifana nasceu onde havia fome, engenho e pão fresco. E disso, o Alentejo sempre esteve bem servido.

Do Alentejo ao resto do país: bifanas para todos os gostos

Seria de esperar que uma ideia tão simples — carne de porco bem temperada dentro de pão fresco — rapidamente conquistasse outras paragens. E assim foi. Hoje, encontramos bifanas de norte a sul, muitas vezes com variações regionais deliciosas.

Em Lisboa, por exemplo, há várias tascas célebres, mas é impossível não mencionar as Bifanas do Afonso, no centro da cidade. Numa portinha discreta da Rua da Madalena, perto do Rossio, o Sr. José Afonso começou a servir bifanas em 1975, mal chegava a democracia. O sucesso foi imediato: cinco décadas depois, aquele balcão minúsculo já viu gerações de lisboetas e turistas formarem longas filas pela manhã fora, à espera de uma bifana pingando molho.

O molho, aliás, é o orgulho da casa — feito com banha, alho, louro e outros temperos — e a tradição mantém-se quase intacta desde o início. Conta-se que os clientes habituais conseguem furar as filas de turistas entrando pela porta lateral, privilégio conquistado pela fidelidade à casa. Não admira que muitos considerem esta a melhor bifana da capital — aquela que, como dizem alguns críticos gastronómicos, “eleva a carne de porco a outro patamar”.

As Bifanas do Afonso, tasca de referência para bifanas em Lisboa.

Entretanto, no Porto, a bifana ganhou sotaque próprio e um lugar de destaque ao lado da famosa francesinha. A versão portuense costuma vir afogada num molho apimentado e a carne é laminada em tiras finíssimas. O sítio mais icónico? Sem dúvida, a Casa das Bifanas Conga, na Rua do Bonjardim.

Aberta em 1976 por Manuel Oliveira — um empreendedor regressado de Angola — a Conga viu as panelas esvaziarem em poucas horas logo no primeiro dia, tal foi a corrida às bifanas com molho picante “tão maravilhoso” que ele tinha inventado.

“No dia em que o restaurante abriu, passadas três horas a carne esgotou. Foi uma loucura, ninguém estava à espera”, recorda Sérgio Oliveira, filho do fundador, em conversa com Culinary Backstreets.

A fórmula de sucesso? Panelas bem à vista do público, fervilhando com carne a cozinhar lentamente num molho de segredos - fala-se em piripíri, cominhos, vinho e outras especiarias. O aroma espalha-se pela rua e atrai todo o tipo de clientes — de estudantes a turistas acabados de aterrar, que vão diretos do aeroporto à Conga, malas na mão, só para matar saudades daquela bifana.

Hoje, a Conga serve mais de mil bifanas por dia e já teve de ampliar as instalações para dar vazão à procura. No Porto, outras casas seguiram o exemplo, e a “bifana à moda do Porto” tornou-se presença obrigatória em festas, romarias e noites bem regadas no Norte.

Claro que bifanas há muitas — e por todo o país. Em praticamente todas as cidades portuguesas encontramos alguma versão: seja a sandes típica de feiras, servida com mostarda e molho a pingar pela mão, seja a bifana no prato, acompanhada de batatas fritas, ovo estrelado ou queijo derretido por cima — adaptações modernas que também conquistam fãs.

Mas a essência mantém-se: carne de porco marinada até ficar saborosa e macia, servida num pão estaladiço.

Cada terra adiciona o seu toque especial. Uns juram que o truque é usar vinho tinto em vez de branco na marinada, outros defendem o uso de banha de porco para fritar e dar sabor. Há quem tempere com pimentão doce para dar cor alaranjada ao molho, outros carregam no alho.

E assim, tal como a nossa gastronomia, a bifana vai ganhando apelidos e estilos. Com presença obrigatória nas noites de Santos Populares e nos estádios antes do apito inicial.

A bifana na vida social 

A bifana esteve também ligada à história social de Portugal. Nos anos que se seguiram à Revolução de 25 de Abril de 1974, o país vivia dias de mudança e escassez. A bifana tornou-se uma refeição rápida e acessível — a carne de porco era relativamente barata e disponível, ao contrário de outras carnes, e o pão, esse, nunca faltava.

Foi assim que muitos tascos e rulotes ganharam a vida nessa época, vendendo bifanas embrulhadas em papel pardo aos trabalhadores das novas fábricas ou aos primeiros públicos dos festivais de verão que começavam a despontar.

Hoje, seja no futebol, na feira ou nas festas populares, é comum encontrarmos aquela rulote de bifanas: o tacho ao lume, o pão empilhado e um papel escrito à mão a anunciar “Há Bifanas!”. Essa cena aquece qualquer coração lusitano — porque faz parte da nossa memória coletiva de bons momentos, simples e saborosos.

Uma sandes, múltiplas histórias

A bifana pode ser apenas carne no pão, mas poucas comidas traduzem tão bem o espírito de Portugal: simplicidade, hospitalidade e sabor.

Desde as suas prováveis origens numa venda alentejana há mais de meio século até às longas filas nas grandes cidades de hoje, esta sandes acompanhou viagens de comboio, celebrações de santos, tardes de futebol e noites de festa.

Cada região lhe deu um toque único. Cada geração guardou uma memória associada a ela — seja a primeira bifana numa festa de aldeia, seja aquela sandes inesquecível comida à pressa numa estação de comboios.

Por tudo isto, a bifana não é apenas um petisco: é património gastronómico nacional. Celebrada tanto em Vendas Novas, onde nasceu e se aperfeiçoou, como em qualquer lugar onde haja um português esfomeado e um pão com febra quentinho a chamar por ele.

Da próxima vez que comer uma bifana, lembre-se destas histórias — e bom apetite!