Quando eu entrei estava pequeno

Quando eu entrei estava pequeno

Os dias vão acontecendo, as prioridades empurram as vontades para o final da fila, as tarefas diárias são sempre mais urgentes que as vontades que levamos dentro, e o trabalho é sempre o primeiro da lista, porque é este que nos alimenta a carteira, e muitas vezes, a carteira somente.

Assim foram passando os meses, mais de seis meses passaram, e eu sem meter um único dia a prancha dentro d’água. Deixei de nutrir essa vontade e ela aos poucos foi-se escondendo em algum lugar remoto do corpo. Algures, numa escura arrecadação das minhas entranhas, aí onde há um corredor com tantas outras arrecadações. Cheira a abandono, cheira a garagem fechada que nunca é arejada, cheira a cemitério de desígnios deixados e esquecidos.

São partes de nós adormecidas, a vida vai acontecendo e às tantas esquecemos o que viemos fazer a esta vida.

Bem sabia o que tinha de fazer para localizar essa arrecadação e encontrar essa vontade adormecida. Empurrei uma tarefa, fechei os ouvidos para outra, agarrei uns minutos peguei no carro e fui até ao mar. Passei a praia do matadouro, virei à esquerda, fiz esse caminho de terra batida, estacionei perto da praia, aí onde fica a praia da pedra branca. Saí do carro e fiquei de frente para o mar. Durante uns minutos a maresia apaziguou-me os pensamentos, os olhos beberam todo esse azul que nunca acaba e o som das ondas a rebentarem davam o conforto de quem finalmente encontra o que procura. Algures nas minhas entranhas, a vontade de surfar começou a mexer-se. Passaram uns minutos, entrei no carro e fui-me embora.

Dois dias passaram, deixei loiça na bancada da cozinha por lavar, esquivei a rotina, peguei no carro e voltei ao mesmo sítio. O mesmo percurso, a terra batida e cheguei à Pedra Branca. Saí do carro. O calor do sol abraçou-me, o vento meigo que vinha de terra saudou-me e o oceano está sempre aí para receber-te. Com esse aconchego de quem finalmente em casa se encontra, relaxei o corpo, desliguei a rádio dos pensamentos, e fiquei a observar as ondas. Cada onda que rebentava chamava por mim, vem, vem … A vontade tentada começou timidamente a sair desse lugar escuro onde se tinha escondido. Fiquei mais uns minutos e a vontade já dava os primeiros passos pela barriga. Hoje não podia, mas essa vontade já não podia ser escondida, precisava de surfar. Peguei no carro e voltei para o comboio das tarefas, próxima paragem, dar um jeito na cozinha. A pilha de loiça esperava-me. Há sempre uma tarefa à nossa espera.

Já passava da meia noite, pouco antes de me deitar, fui ver a previsão das ondas, ventos e marés para os próximos sete dias. Quinta-feira, tudo indicava que dentro de quatro dias, os ventos e a ondulação se iriam alinhar e à hora de almoço a maré estaria de feição para umas boas condições de surf. O meu único receio, que estivesse demasiado grande, mas oxalá que não. Para que as tarefas diárias não voltassem a engolir a surfada e o trabalho não a espezinhasse, marquei no calendário, quinta-feira ao meio dia.

Faltavam dois dias. Depois de tantos meses sem surfar, receava que o mar estivesse maior que as minhas possibilidades. Faltava-me a condição física para enfrentar um mar potente. A confiança que levava estava semelhante à disposição da maior parte dos portugueses, abatida. Em mar grande há menos espaço para erros, a forma física é fundamental para que a confiança não vá juntamente com a carcassa parar ao fundo.

Não nos enganemos. Já tinha feito este exercício anterior, ver as previsões e marcar na agenda,  mas depois ou o mar não estava de feição, ou o trabalho tinha-se complicado ou alguma tarefa chamava por mim. Quando pesava na balança a surfada e o trabalho, o peso da responsabilidade do trabalho era sempre maior que ir para dentro de água Tantas foram as vezes que assim sucedeu, que desisti,  mas esta quinta-feira não seria assim.

Quarta-feira, fui trabalhar e no escritório a vontade de surfar já caminhava pelo peito. Concentrar-me para trabalhar difícil encargo, tinha a mente perdida a pensar como seria. Um dia mais tinha de esperar, respirei fundo baixei o pescoço e mergulhei fundo no pântano de tarefas que tinha para fazer.

As horas passaram e chegou o almoço. Arejei as rodas dentadas do raciocínio com um passeio pela vila da Ericeira. Via pranchas de surf em montras, fatos de neopreno estendidos em varandas a secarem, estrangeiros a caminharem pela calçada equipados com fatos de neopreno, longas tábuas de surf a passearem-se pela vila. Via surf em todo o lado, a vontade gritava-me desde dentro, tinha de travar o peito, para não sair disparada pela boca. Aguenta, é só mais um dia, pedi-lhe. A vontade recolhia-se como a cabeça da tartaruga para dentro da carapaça, a custo, mas regressava. À tarde consegui concentrar-me, a cabeça ficou ocupada e o dia passou mais rápido que um suspiro.

Quinta-feira chegou. Acordei às cinco horas, ainda de madrugada, ainda de noite, saí da cama, peguei no livro, sentei-me no chão de madeira ao lado de uma janela, e comecei a ler. Do lado de fora, as sebes não mexiam, não havia um respiro de vento. O ar sentia-se seco, não havia humidade no ar,  a temperatura era delicada, estávamos em Outubro, o segundo mês de verão da Ericeira. O céu estava limpo, as estrelas pareciam velas a iluminar algum caminho pelo céu ainda negro. O sossego da madrugada, o último respiro de uma noite prestes a acabar e o início de um dia que está para começar, aquela cálida e curta paz que há entre o fim e o início, celebrada com a leitura de algumas páginas do livro que andava a ler. Sustentaria este momento por algumas horas, mas a impermanência impõe-se, o bebé acordou, a minha mulher também, o dia ia começar. Banho, pequeno-almoço, fraldas, e estava na hora de sair de casa. Fui a pé para o escritório, a brisa do amanhecer sustentava a calma que ainda havia em mim e o fresco despertava-me o corpo para o dia que se erguia à minha frente.

Cheguei ao escritório. Assim que me sentei à secretária levantei-me para ir preparar um café, assim que terminei o café levantei-me para comer umas uvas. Como o arranque do motor de um barco, a cafeína começava fazer efeito e o estômago aconchegado estava com umas belas uvas brancas, tinha tudo para encetar o trabalho. Mas só para ter a certeza que as minhas previsões não estavam erradas fui dar uma espreitadela às ondas. Entrei num site de internet que passa imagens, em tempo real, de câmaras que estão apontadas para as ondas de algumas praias. Vejo as imagens. A coisa estava a compor-se, as ondas tinham pouco tamanho e estavam a formar-se bem, o vento continuava no seu descanso, só faltava a maré ficar de feição.

Trabalhava um pouco e voltava a abrir a página para ver as imagens das ondas. Levantava-me e ia à casa de banho. Pegava no telemóvel, largava o telemóvel. Que agonia. Não fazia nada e sem nada fazer sentia-me ocupado. Era a ansiedade que me mantinha agitado. Nem ia surfar, nem trabalhava, empurrava o tempo a fazer coisas sem na realidade fazer nada. Fechei todas as páginas de internet, despedi-me das distracções, olhei para o trabalho e enfrentei-o, sem nada nos bolsos, sem desculpas e comecei a trabalhar. Engrenei a locomotiva nos carris, desliguei os ouvidos, foquei os olhos apenas no monitor à minha frente, ignorei o mundo, esqueci-me quem era e onde estava, pedi permissão e abandonei todas as tertúlias na minha mente. Fiz força, dei um empurrão e esta pesada carruagem que se chama concentração aos poucos começou a mover-se, lenta e pesadamente sobre os carris. Trabalhei e quanto mais trabalhava, a carruagem mais leve ficava, e claro, melhor deslizava pelos carris. Trabalhei e trabalhei sem pensar em mais nada, longe deste mundo com a cabeça nas tarefas e nas tarefas apenas. Só assim poderia construir alguma coisa. Era eu o maquinista desta locomotiva. Estava a começar a andar a bom ritmo.

Algum tempo passou, sessenta minutos passaram. Há um momento em que desço desse estado absorto e espreito para as horas, meio dia e trinta minutos. Estava na hora. Passo os olhos pelo trabalho feito, não foi muito mas algo feito ficou.

Desço da nuvem onde estava, desliguei o computador, sai do escritório e meti-me no carro. A vontade batia-me no peito com apetite para sair, como estariam as ondas? será que era desta vez que me metia dentro d’água com a prancha? A viagem demorou cinco minutos, passei a praia do matadouro, virei para a esquerda e entrei no caminho de terra batida. O vento já tinha acordado mas ainda estava calmo, ao fundo já se via esse azul do mar que está sempre aí à tua espera.

Cheguei à Pedra branca e no estacionamento havia muitos carros, o meu primeiro pensamento, pronto não fui o único a perceber que hoje iam estar altas condições para surfar, já está demasiada gente na água. Estacionei, saí do carro, olhei para o mar e estavam apenas três pessoas na água, coisa estranha, pensei. Olhei para o lado e havia muita gente com os olhos postos naqueles três surfistas. A maior parte dos carros eram de pessoas que estavam a assistir, havia também dois fotógrafos com as lentes apontadas para onde as ondas quebravam. As ondas quebravam  quase todas no mesmo ponto de uma comprida laje de pedra. Os surfistas estavam próximos desse ponto assim como as lentes das máquinas fotográficas apontavam também para esse sítio. Será que está a decorrer aqui um campeonato? Mas não, a memória relembrou-me que o campeonato era mais a norte na praia de Ribeira d’Ilhas. Voltei a olhar para as ondas, procurando a resposta ao meu maior receio, e não, o tamanho das ondas não parecia grande, tinham tamanho mas não parecia excessivo para as capacidades que pensava ainda ter.

Um dos surfistas apanha um onda e sai disparado no ar fazendo um 360 aéreo. Uauuuuu, ouviu-se no estacionamento. Isto é, desceu a onda, surfou a onda, ganhou velocidade, e saiu disparado  pela crista da onda e no ar, permite-me que repita as duas últimas palavras, no ar, rodou a prancha 360 graus, ou seja, deu uma volta sobre si mesmo com a prancha nos pés  e voltou a entrar na onda. A esta manobra, a esta loucura chama-se 360 aéreo. Contado já é emocionante, ao vivo, parece façanha de super-herói. As pessoas que estavam a assistir era também elas surfistas, os seus carros carregados com pranchas no interior denunciavam-nas. Agora a questão que ecoava pelo ossos do meu cérebro, se eram surfistas, porque não estariam a surfar? Talvez o mar estivesse grande, voltei a olhar, mas ou os meus olhos me enganavam, e não seria a primeira vez, ou era a distância que me poderia estar a enganar. Mas pela segunda vez volto a confirmar, não estava grande. Ainda assim, a cabeça começou a ficar inundada de perguntas e dúvidas que teimavam em não descer pelo cano, entupindo as ideias e imobilizando o corpo. Senti que a história de antes se repetia, mais uma desculpa para não voltar a entrar no mar. Se calhar é melhor vir para a semana, comecei a ponderar. Nada disso, marcado para hoje é hoje que vamos entrar, ordenava-me a mim mesmo. No horizonte via-se as linhas de ondas que iam entrando na praia. As ondas rebentavam, mais uns aéreos, estes surfistas eram bastante bons, ouvia-se elogios às manobras, pouco faltava para aplausos, mas o tamanho das ondas, que ainda me preocupava, não parecia demasiado grande, ainda assim não compreendia porque é que os surfistas de terra não se metiam dentro de água.

Bom, já chega de desculpas, está na hora de desentupir a cabeça de receios, esta água estancada de pensar sempre no mesmo não me leva a lado nenhum, há que deixar a água correr e deixar os receios seguirem viagem.  Está na hora de meter este corpo quase reformado dentro d’água. Despi as desculpas, enxotei as dúvidas e comecei a vestir fato de neopreno. Durante o processo de meter o corpo dentro do fato de borracha, encontrei no chão, nesse chão de terra castanha clara, quase enterrada, uma moeda de um euro, o que significaria isto? Um momento de sorte antes de uma desgraça que estava para vir? Guardei a moeda, posso perder a vida mas pelo menos um euro já ganhei. Chegavam mais carros, mas ninguém se lançava para a água. Muito estranho, pensava. Cada vez mais pessoas a assistirem. A cabeça continuava a vacilar e o meu corpo um pouco tremia. Fato vestido, agora já não há volta atrás, agarrei nos pés de pato, na prancha e comecei a descer as escadas em direcção à praia.

Enquanto descia as escadas, olho à minha volta, alguns olhares dos espectadores fixavam-me, do outro lado as ondas a quebrarem. Senti que estava a entrar num sítio exclusivo para campeões quando eu há mais de seis meses que não entrava na água e, para fique claro, o meu nível na presente modalidade desportiva designada bodyboard não passa de aprendiz de amador. Pobres aqueles que julguem que vou brilhar, ou pobre de mim por entrar na água? Em breve iríamos saber.


Fim da primeira parte. Segunda e última parte disponível aqui.

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Foto por  Anastasia Taioglou