O que quero ser quando for grande … aos cinquenta
Ninguém escolhe um curso universitário por vocação. Pelo menos, não no Portugal em que eu cresci. Há uns poucos que já sabem que querem, advocacia, farmácia, medicina ou enfermagem. Há outros que escolhem um curso porque acham que vão gostar, mas não fazem a mínima ideia do que lhes espera. Outros, como eu , não sabem o que querem, e escolhem porque alguém lhes disse que aquele curso dava emprego garantido. E assim foi, meti-me em Gestão de Empresas. Até parece que ia graduar-me para no futuro gerir uma holding familiar de 8 empresas no setor do retalho. Nada disso. “Quem tem um canudo, tem um emprego” , foi assim que me venderam a coisa. Esta foi a máxima pregada pelos meus pais e familiares. Não interessa quem és, ou o que vens aqui fazer, tens é de ir para a faculdade e conquistar um canudo. Mas em quê? Qualquer coisa. Volta com um papel que diga diploma. Obedeci, e lá fui eu. Economia, Sociologia e Gestão. Os três sabores mais escolhidos pelos indecisos.
O curso passou a correr. A maior parte dos professores tinha tantas capacidades pedagógicas como uma pedra tem para nadar. As aulas pareciam leituras em voz alta de manuais de instrução com ilustrações do powerpoint. Essa dor foi anestesiada com cartadas, festas, noitadas, tardes de esplanada e caminhadas de madrugada por Lisboa com os primeiros raios do sol na cara, os pés descalços e os saltos nas mãos. Metade das cadeiras pareciam os bibelôs da casa da minha avó, existiam somente para preencher o vazio. Bibelôs nas mesas, nos armários, nos aparadores, estantes com prateleiras carregadas de bibelôs. Porquê tanto bibelô? Será que as pessoas sentiam que sobrava espaço nas casas ? Ou talvez por falta de companhia? Ou, se calhar, tal como no curso de Gestão de Empresas, para dar ares de riqueza, de importância. Ah, a Dona Filomena tem tanto bibelô, deve ser rica. Ah, o curso de Gestão tem tantas cadeiras com nomes pomposos, deve ser um bom curso. Então vá de encher a casa e a licenciatura de tralha inútil para parecer bem. Parece aquelas pessoas que metem conversa só para quebrar o silêncio. Silêncio e casas sem tralha, é ar puro a entrar nos meus pulmões. Se retirarmos todos os bibelôs do curso de cinco anos de Gestão, ficávamos com dois anos sem tralha. Mas a tralha teve de se comer e o curso passou a correr.
Quando dei por mim, já estava a trabalhar. Ao início, matava-me a trabalhar, tinha a energia de uma égua. Muita coisa para aprender, muitas horas extra feitas e muito trabalho para apresentar. Gente nova, gente gira e aqueles cocktails no final da jornada. Era a cidade a puxar por mim, e eu a adorar ser puxada. Leva-me onde quiseres. A cidade para descobrir e nem à lua tinha de prestar contas. Era eu a viver a segunda adolescência mas desta vez sem precisar de mesada. Fazia com a vida o que bem me apetecia. Vestidos caros, curtos e apertados, a minha sensualidade brilhava nas noites de Lisboa. Noitadas de direta para o trabalho, e eu a adormecer na sanita do lavabo. Sem perder os clássicos relacionamento ocasionais e embriagados nas festas de natal da empresa com colegas, claro, da empresa. Aprendi que não se deve comer a carne onde se ganha o pão, mas só depois de três relações intraempresariais. Que erro! Os primeiros anos de trabalho foram os melhores.
Os anos passaram e essa loucura acabou. Primeiro veio o casamento, depois uma cria. As noites passaram a ser a dividir por três: a cria, as mamadas e as cólicas da cria. Tinha mais fraldas que minutos para mim. Não há, maior felicidade que a minha filha, mas no inicio só os duches de água quente é que traziam a mulher que eu já duvidava haver em mim. Agradecida estou, mas foram os meses mais duros da minha vida. Não os trocava por nada deste mundo. O casamento entrou em eclipse quase total durante uns meses. A sexualidade foi pelo cano e logo a seguir foi-se a intimidade. Compensei com bolos, snacks, frutos secos e sobremesas. Olá bóia à volta da barriga. Adeus biquíni. Obrigado por voltares moda do fato de banho, esta pança fica melhor à sombrinha. Não sei se foi o casamento que melhorou ou se foram as nossas vidas que também se eclipsaram. O certo é que os dias começaram a repetir-se.
O meu carro que antes não conhecia rotinas, agora parece a carreira da carris, casa trabalho, e do trabalho para casa. Ainda assim dizem-me, e eu repito a mim mesma, não me posso queixar. Hoje estou numa posição confortável, ganho bem para a realidade portuguesa, a minha filha está numa escola privada, mudei de carro o mês passado e não tenho muitas chatices. Se o trabalho é bom ou não? Há trabalhos piores. Só preciso de acordar cedo, deixar a miúda na escola, ir para o trabalho, sentar-me à secretária, empurrar a charrua, esperar pelas seis da tarde e voltar para casa. O trabalho vai-se fazendo e os dias vão passando. O trabalho é quase sempre o mesmo e a forma de o executar também. As fábricas do mundo moderno, uma secretária, um teclado um monitor e um rato. Não foi um amor à primeira vista. Aprendemos a gostar do trabalho que temos. É como a caixa de correio, se não aprender a gostar de receber publicidade nunca vai ter uma vida feliz. É o que temos e é com isso que vivemos.
Desde que comecei a trabalhar nunca parei para me perguntar, é isto que quero fazer? Nem mesmo antes disso perguntei, é isto que queres estudar? Nem ainda antes disso, queres ir para a faculdade? Não fui eu que escolhi o caminho, foi o caminho que respondeu a estas perguntas por mim.
Nos últimos meses, especialmente agora, a dias de acabar as férias e de voltar à fabrica, estas perguntas começam a comer-me as entranhas como térmitas comendo a madeira. Tenho pesadelos onde vejo parasitas, com forma de minhoca, a entrarem e saírem do meu crânio através de buracos e alimentado-se da mioleira. Acordo empapada em suor, e assim que abro os olhos, sinto o metal frio do cano de um revólver encostado à têmpora esquerda, e tu o que queres fazer quando fores grande? Sou eu que pergunto a mim mesma e fico gelada. Tenho poucas opções. Ou faço um esforço para esquecer a pergunta e prometo a mim mesma que nunca mais vou voltar a pensar no assunto ou, se não tenho uma resposta, o revólver dispara. Se a bala que entra pela têmpora esquerda estoirasse os miolos pelo menos morria. Mas é bem pior, a bala deixa-me viva mas mata-me o propósito de puxar a carroça da vida e empurrar a charrua do trabalho. Mata-me a determinação. É a morte em vida.
Bem sei, tenho cinquenta anos, já torrei mais de metade da minha data de validade mas, ainda assim, porra é isto? É isto que queres fazer o resto da vida? Primeiro vem o silêncio, o sossego, o mar retrai-se exatamente como antes do tsunami, e agora já vejo as espumas, a onda a chegar. Luísa, enche o copo de vinho, prepara-te para o embate, tenta manter a calma, não te afogues no mar da ansiedade. Respira fundo Luísa.
A pergunta é simples, o que me mata é não ter uma resposta.
Luísa, acalma o drama, digo a mim mesma. Se já bebeste esse copo, bebe outro, pega nos binóculos e muda a perspectiva. Recebes o ordenado a tempo e horas, o teu chefe não é uma besta, a empresa não vai fechar, e a loucura das horas extra tem acalmado. Com aquilo que já sabes, a charrua do trabalho quase que já vai sozinha, até podes fazer o trabalho de olhos fechados.
Mas porra não entendes? O problema é mesmo esse, é que passo o dia de olhos fechados, a tentar esquecer as oito horas que passo no trabalho sempre a fazer o mesmo. Mas claro tu não queres saber de nada disso. Só queres é não ter chatices, que eu estacione esta carcassa no sofá, ligue a televisão, encomende pizzas e adormeça a comer doces.
Luísa, calma, continuo a falar comigo. Será que tudo isto não passa de um capricho de princesa ? Afinal todos temos contas para pagar. Repara, só muda de trabalho quem fritou a pipoca, ou quem já teve um burnout, ou alguém que ficou desempregada. Ou, aquelas poucas, muito poucas mesmo, que largam tudo para experimentar outra coisa, para seguir uma paixão. Olha a Vanda, lançou uma marca de biquinis e anda pela Europa em showrooms a vendê-los.
Espera, espera, agora disseste uma coisa interessante. Seguir uma paixão … Isso soa bem, aliás soa muito bem. Então e se eu experimentasse fazer isso ?
Ok, vamos lá então explorar essa ideia. Vamos lá Luísa, agora é bar aberto, não penses no futuro, pensa apenas no presente, algo que gostarias genuinamente de fazer, qual é a tua paixão?
A minha paixão é … e nem uma palha mexe, nem uma brisa, apenas deserto, areia, carradas de areia, dunas de areia, mas nada mexe. Vejo um enorme abismo, mas não é à frente, é mesmo debaixo dos meus pés.
Então Luisa qual é a tua paixão? Simples, triste e duro, não sei!
Mas quando olho à minha volta vejo que são muito poucas as pessoas que realmente se dedicam ao que gostam, que seguiram a sua paixão ou pelo menos escolheram uma coisa que gostavam.
Nós os restantes, continuamos a empurrar o carrinho todos os dias e lá nos vamos convencendo que não custa assim tanto, são apenas oito horas diárias.
Por mais que o repita, esse mantra já não me convence. Estou farta do trabalho e a única coisa que tenho feito é fazer o mínimo esforço possível para executá-lo, o que resulta muitas vezes num trabalho que não me orgulho de apresentar.
Pausa, deixa-me respirar um pouco, e aproveito para encher mais um copo.
É que entra pessoal novo aqui no trabalho com outra genica, espírito inovador, vontade de fazer as coisas de forma diferente, e eu aqui presa aos meus conhecimento medievais.
Se calhar precisas é de reciclar-te antes que te reciclem a ti.
Sim, é isso mesmo, vou aprender umas coisas novas. Mas, espera, para quê aumentar os meus conhecimentos de um trabalho que eu já não gosto?
Talvez por isso mesmo, talvez aprendendo coisas novas vais gostar mais do que fazes.
Mas não entendes? Já não quero mais esta charrua para nada, quero é mudar de vida.
Então porra responde-me, o que é que queres fazer?
Pois, não sei. Como é que eu posso ter a idade que tenho e não saber responder a esta pergunta? A minha filha que tem catorze anos, responde sem pensar, quero ser bailarina. Mas também sabe lá ela. Onde é que ela vai sendo bailarina? Em Portugal não há trabalhos estáveis para isso! Vai viver do quê? Que futuro é que lhe espera? Há que saber fazer escolhas, e é isso mesmo que tenho de lhe explicar. Ela precisa de um trabalho que lhe dê sustento, estabilidade, garantias, descanso e que lhe permita comprar uma casa e um carro.
Porra Luísa! Aquilo que tu tanto criticas queres agora impingir à tua filha?
Como assim? pergunto-me.
Mostra-lhe os caminhos, as opções, o que pode encontrar na viagem, mas não a metas no comboio nem escolhas a viagem por ela.