O caminho da mãe

O caminho da mãe

Mãe, levei meses para escrever-te, ensaiei muitas noites as palavras na minha cabeça faltou-me sempre a coragem para escrever-te.
Dentro de uma semana faz dez anos que mudei-me para Madrid, já passaram três meses desde a última vez que falamos. Não discutimos, se calhar foi esse o nosso erro. Deixamos simplesmente de falar, o telefone nunca mais voltou a tocar e eu não voltei a pegar na caneta para te escrever. Todos os dias acordava com este silêncio de muitas perguntas e nenhuma resposta, mas havia um ressentimento que impedia-me de ligar-te. Saía da cama e seguia com a vida até a noite chegar. Passava as insónias a imaginar a carta que um dia gostaria de escrever-te. Nunca encontrei as palavras certas.

Bem sei, nunca entendeste a minha ida para Madrid, magoava-te ter o teu filho mais novo longe. Eu também nunca senti o apoio para seguir o meu caminho. Esperava que algum dia me apoiasses. Em cada ida a Lisboa voltava com o coração apertado ao despedir-me de ti e ver os teus olhos a brilharem de lágrimas por chorar. Nas despedidas no aeroporto, sentia estar a espetar-te uma faca no peito, quando na realidade estava a tentar viver a minha vida.

Ainda me lembro há oito anos quando estávamos em Belém na casa do tio Abílio e eu a falar-lhe do bonito de Madrid, das aventuras das viagens, dos lugares por onde havia viajado, e ele travou o meu entusiasmo alertando-me, quem perde as raizes perde a ligação com a terra e a terra é a nossa primeira família. Na altura pareceu-me absurdo, foi nas viagens que descobri a minha pessoa. Apenas vários anos depois, compreendi as palavras do tio Abílio.

Nunca te contei porque já o sabias. Viver nos arredores de Lisboa, na tua casa, estava a transformar-me numa pessoa depressiva. As insónias comiam-me as noites e só as drogas me davam o descanso para conseguir dormir. Estava a desligar-me de mim, incapaz de sentir e sem saber quem era essa pessoa que todos os dias via no espelho quando entrava na casa de banho. Às vezes apenas conseguia dormir duas horas, arrastava-me durante os dias sem rumo e sem ambição. Não estou a contar-te nada de novo, conhecias as minhas mudanças de humor o meu constante estado de irritação.

O que nunca te contei foi aquilo que demorei anos a perceber. Todas as noites sem dormir passava dando-me voltas às memórias para tentar perceber a minha vida até hoje. Foi nas noites sozinho em bares, com o meu caderno e vários copos de vinho, que descobri a dor de todos estes anos. Nunca me senti parte de nada. Nunca encontrei o meu lugar neste mundo. Madrid é-me familiar mas não é a minha casa, tal como não o é Carnaxide onde cresci. Quando acreditava em Deus sempre lhe perguntava o porquê de estar aqui e não noutro lugar.

Não sei se foi por ter sido o filho mais novo, se foi por ter uma diferença de dez anos do meu irmão, talvez eu já não estivesse nos vossos planos. Depois de muitas insónias nunca encontrei a razão, apenas o sentimento de não fazer parte da família, nunca me senti pertencer. Não tenho dúvidas do teu amor mas não encontro uma memória onde o digas aos meus olhos, nem o sentimento de teres orgulho pela minha pessoa. Havia sempre um “mas”, havia sempre quem o fizesse melhor, ou dizias-me outra maneira de fazer as coisas e eu sentia que de mim esperavas outra coisa. Sentia desiludir-te. Durante muitos anos tentei agradar-te escolhendo o caminho que gostarias fosse o meu. E quanto mais seguia esse caminho mais me afastava da minha pessoa mais sufocante a minha existência se tornava.

Assim a minha vida continuou. Nunca tive um grupo de amigos onde me considerassem um amigo. Tentei vários grupos e sempre me sentia excluído. Onde todos tinham alcunhas ou nomes de uma só palavra, a mim tratava-me pelo nome e apelido. Nunca senti o meu lugar no mundo. Essas raizes que se perdem ao viajar como dizia o tio Abílio, são as raizes que nunca tive e por isso me resultou tão fácil descolar. Quantas vezes no metro de Madrid, enquanto esperava pelo comboio, pensei, que se hoje desaparecesse ninguém daria pela minha falta. Não pertencia.

Nunca quis culpar ninguém. Culpei-me a mim próprio por não dar valor à mãe que tenho. Tantas vezes repeti para mim mesmo, tens muita sorte, às vezes funcionava mas nunca por muito tempo. Carregava uma culpa cada vez mais pesada, as drogas ajudavam-me a não sentir esse peso. Nunca te culpei por nada. Acredito que deste o melhor e imagino o difícil que terá sido. Para ficar em paz comigo e contigo resolvi esquecer o assunto. Por uns tempos funcionou, depois tudo piorou.

Nos primeiros anos de Madrid falávamos muito por telefone, escrevíamos cartas e quando vinha a Portugal sentia genuína alegria de te ver. Eram dias curtos entre ver os amigos e estar contigo. Regressava sempre com a culpa de viver longe de ti, mas tinha de seguir o meu caminho. Madrid foi uma escola em muitas dimensões. O primeiro ordenado na minha área, ter a minha casa, novos amigos e as primeiras mulheres. Mas o mais importante foi a parte emocional. Quando um não se sente parte de nada a primeira coisa que faz é erguer uma muralha à sua volta para se proteger de um mundo que sente não ser o seu.

Tornei-me no contrário da minha pessoa, uma pessoa fria, quando a minha natureza é ser extremamente sensível. Pensava estar a defender-me da vida. Queixava-me de não ser correspondido no amor mas na realidade buscava mulheres à tua imagem, que não me amavam. Esforçava-me em mostrar-lhes que era digno do seu amor mas elas não estavam interessadas e eu mais uma vez fechava-me. As mulheres que diziam-se apaixonadas por mim eu desprezava e afastava-me. Procurava amor mas foram precisos anos para começar a gostar de mim próprio.

Estes três últimos meses de silêncio foram os momentos mais difíceis da minha vida. Passava os fins de semana fora de casa, em festas que duravam três dias com estranhos sem rumo na vida, tal como eu. Mantinha várias relações onde tentava agradar com amor que não sentia, causando dor em quem me queria. Adormecia no trabalho e por várias vezes estive para ser despedido, valeu-me a sorte de ter alguém no céu a olhar por mim. Esse ano terminou quando passei três noites no hospital Ramón y Cajal por um ataque de ansiedade. Foi quando percebi que não podia continuar a esconder-me, que tinha de olhar para dentro de mim. Comecei a escrever, a fazer-me perguntas, a ir a retiros espirituais. Olhei para dentro e vi a sombra que habitava em mim. Foi durante esse processo de cura que comecei a destruir o muro erguido à minha volta e a olhar para o passado para tentar perceber quem eu era e quem eu sou.

Saí do hospital e comprei um bilhete de avião só de ida. Afastei-me durante seis meses de Madrid, deixando para trás a noite, as festas e as drogas. Viajei até à Indonésia, sozinho. Aos vinte e um anos quando fiz a primeira viagem de mochila às costas cruzei o oceano para viajar três meses pela América Central, sem nenhum plano, sem um único mapa na mão. Mas desta vez tinha um plano, queria descobrir o que havia no meu interior. Durante esta viagem voltei a apaixonar-me por um amor não correspondido e mais uma vez o passado perseguiu-me. Afundei-me durante um mês sozinho numa depressão em pleno paraíso de praias, montanhas e palmeiras. Mais uma vez esse alguém algures no céu olhou pela minha pessoa e fiz um amigo uruguaio, chamado Sebastián. Ele andava sozinho de mota a viajar. Um tipo moreno, surfista, sempre acelerado pelo chá-mate que se tomava em várias ocasiões durante o dia. Conhecemo-nos na ilha de Lombok, num restaurante improvisado na beira da estrada. Falamos durante horas e depois da quinta cerveja, perguntou-me pelos meus planos, disse-lhe que iria ficar por ali e antes de poder acabar disse-me, amanhã vou voltar para Bali vem ter comigo a Uluwatu e vamos surfar. E foi isso que fiz. Senti um impulso e segui o instinto. Preparei a mochila e passados dois dias apanhei um barco para Bali.

Estivemos juntos durante três meses a surfar todos os dias. A vida sorriu-me com mais uma oportunidade. Foi aí onde conheci a Rita, a minha atual e primeira namorada. Na praia de Padang-Padang, de madrugada numa festa. Demos um mergulho iluminados pela lua em quarto crescente. Senti um bonito calor interior e foi mútuo. Ainda me lembro quando andamos a primeira vez de mota e ela pôs os braços à volta da minha barriga, senti que pertencíamos um ao outro.  Ela é portuguesa e por aquela altura vivia nos arredores de Lisboa. Estivemos apenas em três momentos na Indonésia e depois disso eu só pensava em voltar. Foi com ela que consegui voltar a casa. Senti o desejo de voltar a pegar nas rédeas da vida. Voltei a Lisboa há um ano.

No início não foi fácil, nunca tinha gostado de alguém que também gostasse de mim. Podíamos verdadeiramente estar juntos e eu desconhecia esse caminho. Só sabia andar de mulher em mulher, de noite em noite de folia. Mas com ela eu queria ficar. Antes de a amar tinha primeiro de ser capaz de sentir. Primeiro vieram as dúvidas, os medos, as mentiras e as inseguranças. Rita teve o amor e a paciência para aguardar que eu me curasse e essa pessoa algures no céu que sempre olhou por mim disse-me numa noite quando estava embriagado e sozinho na pista de dança de uma discoteca para nunca perder essa mulher. E foi isso que fiz.

Mãe houve um dia, uma noite num retiro, senti um rio do amor a correr-me pelo corpo. Vi-te a ti com a tua mãe e os teus cinco irmãos, o pouco colo que a tua mãe te deu por serem tantos e vi também o pai e a sua nuvem de preocupações. Também vi o meu irmão com as mesmas preocupações do pai. Depois vi a Rita, a família dela e a nossa, estávamos todos juntos no mesmo barco, éramos todos a mesma família, e eu também estava lá. Eu pertencia. Vi também um bebé rapaz a nascer. Nessa noite vi parte da sombra que há em mim. Percebi que sem amor, há apenas sombra e tristeza mas com amor tudo se cura. Sempre foi isto que faltou às cartas que te queria escrever e hoje, estou aqui para dizer-te que o amor que sinto por ti sempre existiu tal como o amor que sentes por mim, sem ele eu nunca estaria aqui e não seria a pessoa que orgulhosamente hoje sou.

Nunca cheguei a escrever-te. Cheguei hoje o mais rápido que pude desde que o pai me ligou. Gostava de ter-te aqui e poder dizer-te nos olhos mas já partiste. Cheguei demasiado tarde. Perdoa-me por não ter tido a coragem. Há três meses que todos os dias te penso, queria muito contar-te que dentro de seis meses vais ser avó e vais ter um neto, vai chamar-se Guilherme. Sei que a notícia iria deixar-te muito feliz. Era o que eu mais queria na vida, entrar na tua a casa com o Guilherme nos braços e apresentá-lo à avó. Preenche-me um árido vazio, partiste sem saberes que irias ser avó. Mas já partiste.
Agora compreendo as palavras do tio Abílio, quando perdemos as raízes desligamo-nos da nossa essência. Hoje, o nosso desencontro foi onde finalmente me encontrei contigo dentro de mim. Foste a melhor mãe que pudeste e eu tentei ser um bom filho.

Para sempre com amor, o teu filho mais novo.