No duche tal como na vida
No duche há quem prefira lavar primeiro a cabeça, deixando o cabelo ficar a marinar no champô. Há aqueles que preferem começar pelas pernas. Há aqueles que só lavam as pernas dia sim dia não, para não se terem que baixar todos os dias. Há os que começam pelo tronco e há aqueles que como o champô faz tanta espuma lavam-se todos com champô. Há muitas formas de tomar um duche e há quem os tome todos os dias e há aqueles que só tomam de vez em quando. Assim como no polibã ou na banheira há também várias formas de levar isto a que chamamos vida.
Há quem leve a vida como se fosse uma pesada cruz que, talvez por herança ou missão divina, têm de carregar às costas ou aos ombros. São aqueles que todos os dias gemem a contar os sacrifícios que fazem pela vida, pelo esforço imenso de tal missão. Hoje só dormi duas horas, São quatro da tarde e ainda não almocei, Hoje ainda só comi uma sandes, Hoje não acordei nada bem deve ser dos ossos. Não se interessam muito pelo o que os outros têm para contar, eu isto, eu aquilo, e querem sempre anunciar ao mundo que ganharam o ouro no pódio dos lamentos. Diz um amigo, Ontem tive de tratar de umas coisas e dormi apenas seis horas depois …. (interrompe o da cruz) Ah, eu só tive tempo de dormir 4 horas. Diz outro amigo, O meu avô está com dificuldades para andar e estava a …. (interrompe o da cruz) o meu já há muito tempo que não anda. As suas vitórias são as suas desgraças. E esforçam-se bastante, pois têm muito mal perder. Mesmo quando a coisa corre bem não deixa de ser um motivo para celebrar os lamentos, A festa foi incrível mas chegamos muito tarde a casa, Sim, eu adoro fazer isso mas cansa muito. Sempre imaginei estas pessoas com uma cruz imensa em cima dos ombros, que, pela minha natureza, já tentei várias vezes ajudar a transportá-la até ao seu destino, mas essas pessoas nunca querem ajuda, porque essa cruz não tem destino, é para ser carregada e mostrada em todo o lado, essa cruz será a sua lápide. É como um passado não resolvido, que fazem questão de levar para o restaurante, para as viagens, para o centro de saúde, no autocarro, para novas relações ou para o talho enquanto esperam pela sua vez, No outro dia vim aqui ao talho e estive quarenta minutos à espera para ser atendido. Tiram-lhes a cruz tiram-lhes tudo.
Há aqueles que levam a vida como se fosse uma corrida de carros e que quanto mais rápido vão, mais desfrutam da corrida. Acordam logo com a primeira mudança engantada e o pé a tatear o acelerador , e vão varrendo o dia como um carro de corrida que limpa quilómetros sem se cansar. Sejam tarefas, vitórias, tristezas ou nas finanças, vai tudo a eito, sempre com o pé no acelerador, sempre de janela aberta pela auto-estrada. A adrenalina corre-lhes pelo sangue ultrapassando os glóbulos vermelho pela esquerda na curvas mais apertadas das artérias. O sangue é bombeado para todo o corpo e a adrenalina também. Quando encostam na cama apagam-se. Como bons corredores de corrida querem sempre chegar em primeiro. Isso de fazer as coisas com calma é coisa dos lentos, eles são vencedores, os reis da velocidade, a vida passa a abrir, não há tempo para ver as cerejeiras em flor porque na auto-estrada o mínimo são 120 quilómetros por hora. Só se apercebem da velocidade que levam quando se acabam as pastilhas do travão e no segundo dia de ferias é que dão pela falta da mala de viagem.
Há aqueles que têm de lembrar-se todos os dias de agradecer que estão vivos. Por um lado gostam de estar por aqui mas às vezes têm dúvidas, tal como um emprego ou uma relação. Ás vezes têm de fechar para balanço e fazer o inventário, para que sejam os números a decidir. Sim, ainda é economicamente viável ter este negócio aberto. E lá vão eles, levantam a persiana, e agradecem por terem o negócio mais um dia aberto. Cada novo dia acordam e fazem uma lista para saberem as coisas importantes que têm e depois agradecem à vida por cada item que têm na lista. Quando temos de listar todas as coisas boas é porque temos demasiados bens materiais, pois os que nada têm e só a eles se têm, já sabem o valioso que é estarem vivos, tudo o resto vem por acréscimo.
Há aqueles que acham que estão vivos, mas eu diria que é discutível. Levantam-se e fazem o mesmo todos os dias. Vão em modo piloto automático, parece ser o corpo que lhes dá as ordens e não a cabeça. Pode aparecer um imenso arco-íris na sua frente mas nunca o vão ver pois a sua mirada está sempre no passado ou no futuro “e se eu tivesse feito assim, porque é que fiz assado, e como seria se fosse um refugado?” . Já desistiram da vida. Já não acreditam que venham mais novidades. Já conhecem os cantos à casa, para quê esforçar-se, para quê pôr energia se a voltinha é sempre a mesma? Sim, o céu é azul e há dias de sol, mas isso já está mais do que visto, ou me compras um bolo, ou uma garrafa de vinho ou então não há nada que me possa interessar. Há poucas coisas que acordam estas pessoas para a vida, um desconto no supermercado, uma refeição a sós com a televisão sem ter de partilhar com ninguém, onde a euforia acaba assim que a comida é engolida.
Há aqueles em que a vida começa a uma sexta-feira depois do trabalho e acaba domingo à noite. São dias de festa, dias de esponja, de comer e beber, de novidades, de absorver tudo até se ficar todo empapado. De dar tudo o que se tem e de queimar dinheiro à farta. Poê toda a energia que têm e quando essa acaba, ligam o gerador alimentado a litros de café, àlcool, drogas ou tudo junto. O importante é nunca parar. No fim de semana não há tempo para descansar, é só festa e cada minuto conta. O domingo acaba com um desmaio na cama, o final da ultra maratona para o coração. O resto da semana, os restantes cinco dias, são para recuperar. É toda a louça suja empilhada na bancada da cozinha depois do banquete. É a casa do avesso para limpar e arrumar, são dias chatos e pesados de pôr a vida em ordem com muito cansaço e muito pouca energia. É um esforço de cinco dias, onde cada dia é mais duro que o anterior. Segunda-feira é mortal, mas terça-feira é ainda pior, é nesse dia que o cansaço realmente cai como um piano de cauda nas costas. A casa continua de pantanas e a vida é empurrada como um carrinho de compras até à caixa. Só lá para quinta-feira é que voltam a ser pessoas, e sexta-feira já só pensam na recompensa que se chama fim de semana. Dizem que vivem a vida ao máximo mas claramente não são os melhores estrategos, por cada cinco dias na lama há dois de festa. Nem as finanças têm cargas fiscais tão agressivas.
Há aqueles que se acham uns coitadinhos, eles bem que se se esforçam, fazem tudo como deve de ser, dão o litro, mas o universo não lhes dá uma abébia e todos os dias conspira contra eles. Até gostavam de trabalhar mas quando o fazem ficam extramamente cansados. Distraem-se com os prazos do IRS e lá está o universo a dar-lhes uma multa. Combinam com um amigo às onze da manhã, precisam de quinze minutos de viagem de carro, e saem de casa cinco minutos antes da hora marcada e lá está o universo a criar um engarrafamento no caminho só para eles chegarem atrasados. Vão muito atrasados então aceleram o carro para chegar a horas, e pumba têm um acidente, porquê? Porque o Universo não gosta deles. Recebem um email com os passos para realizar a candidatura, mas como é muito longo só leem as duas primeiras linhas e pumba, quando submetem a candidatura o prazo já tinha acabado. Obra de quem? Desse sacana, o universo. São coisas do além que só acontecem a eles.
Há aqueles que levam a vida como uma lista de tarefas a executar e eles pertencem ao secretariado. Ir ao supermercado check, comprar detergente para a máquina check, ouvir um amigo que está num aperto check, demonstrar o quanto gostamos de alguém check, pedir desculpas por algo errado que fizemos check, é tudo a mesma coisa check, check, check. São tarefas, e cada tarefa é para resolver, amo-te ou comprar pão integral, check, check, são tarefas e as tarefas têm de ser despachadas. Sim gosto de ti, resolvido, o amor é como uma ida ao supermercado, é tão prioritário como o suavizante para a roupa. Aqui não há cá favoritos nem diferenciação, são todos tratados da mesma forma. Dai-me tarefas que eu resolvo-as, esteja sol, chuva ou com um recém nascido nos braços, tudo são tarefas, e tudo se resolve. A vida é uma lista e no final batemos as botas, essa é a ultima tarefa de todas.
E agora pergunta o meu crítico interior a mim próprio, e tu artista, presunçoso e capitalista que tentas com estas palavras atirar-me pó para a vista, qual deles é que tu és? Olá chefe, antes de destruir-me a auto-estima permita-me que lhe responda, no duche nem sempre lavo as pernas. E sim, é verdade que quando ponho mais champô do que queria uso-o também para lavar o corpo, culpado me declaro. Mas atenção, não é algo premeditado. Na verdade, nunca sei o que vai acontecer quando meto os pés no polibã. Não tenho um plano para os meus banhos diários. O mesmo acontece-me na vida, sempre que abro os olhos de manhã não sei que dia é que me espera, nem o que me vai sair na rifa e muito menos quem vou ser nesse dia. O meu grande esforço é para não julgar os outros pois sei que ao fazê-lo estou a julgar-me a mim mesmo.