Mas a quem é que isso lhe interessa
Por aqueles tempos vivia em Madrid no bairro de Prosperidad. Um bairro historicamente obreiro, ainda hoje mantém alguma autenticidade que pelo centro já se vai perdendo. Não vim aqui parar por convicção, andei por muitos bairros à procura de casa, e depois de ver buracos que chamavam casas, e casas que pareciam dispensas, por fim encontrei um apartamento de dois quartos que podia pagar e fiquei encantado com a extensa varanda da sala, perfeita para a minha recente paixão botânica. Só depois de assinar o contrato de arrendamento é que percebi que iria viver em Prosperidad.
Estava a dez minutos a pé da estação do metro. Pelo caminho havia uma peixaria, dois restaurantes típicos, um supermercado grande, dois bares com aspeto que põem tapa, duas cafetarias, um parque para crianças, um restaurante de sushi duvidoso, duas farmácias, um centro de artes marciais e um talho, parecia-me bem. Trabalhava como freelancer para várias revistas. Escrevia crónicas, alguma poesia e às vezes textos por encargo. Umas vezes pagavam-me quando enviava os textos outras vezes tinha de esperar trinta dias, nunca ganhei uma fortuna, mas fazia o que gostava: a possibilidade de todos os dias contar alguma história ao mundo.
Não fazia ideia de quantas pessoas liam os meus relatos. Quando o assunto era polémico, caiam sempre comentários, e às vezes era eu que provocava essa chuva deixando pequenos erros ortográficos: insultavam-me, diziam que o autor não era digno de se intitular escritor ou que este mundo estava perdido. Tudo isto porque escrevia porca com cê de cedilha. Ainda que o assunto fosse a solidão que se vive no interior de Portugal, mas a desgraça era cê cedilhado que o autor pôs na palavra porca. E com razão! As palavras são sábias, há que respeitá-las.
Escrevia quase sempre em casa, no quarto onde não dormia. Vista para a varanda onde viviam os gerânios. As suas folhas em tons verdes garridos, sinal de vitalidade, davam-me o foco nos dias em que as palavras não queriam dançar. A taça de café era o primeiro, lia um par de notícias, preferência pela secção de crime, e nos dias mais duros munia-me de um livro. Ao fim de vinte páginas já tinha a motivação para atacar o teclado e começar a escrever. Tentei muitas vezes fazê-lo em papel mas a minha letra é tão má que nem eu a consigo ler.
Com excepção daqueles raros cinco dias que ocorrem esporadicamente durante o ano, em que me empapo em café e consigo estar fechado no quarto a escrever continuamente, nos restantes preciso de sair de casa e ver a vida a acontecer na rua: pessoas a deslocarem-se rapidamente embrenhadas nos seus pensamentos, carros a acumularem-se nos semáforos, pessoas a entrarem e saírem da estação do metro. Vou à mesma cafeteira desde o dia que assinei o contrato de arrendamento, sento-me e fico a observar a vida dos outros enquanto desligo-me da minha, esvaziando a cabeça, sem pensar nada e sem nada fazer. Neste espaço do nada, é onde surge um respiro, substrato fértil para brotarem rebentos de inspiração que me dão o ímpeto para fazer alguma coisa, quase sempre escrever. Nesse momento, começo a esboçar ideias na cabeça: podia ser uma crónica, ou um artigo que tinha de entregar. Lentamente ergo os alicerces, depois surgiam frases, e quando já tenho suficiente pago o café e ponho-me a andar.
Na sala, no lugar esperado da televisão, tinha um amplificador de boa qualidade, peça volumosa e robusta, herdada do meu pai. Em cima um gira-discos que comprei mais tarde em segunda mão. O que mais ouvia eram CDs de música clássica. Uma coleção comprada na feira da ladra, quando vivia no centro de Lisboa: Chopin, Beethoven, Mozart, Tchaikovsky e Wagner. A harmonia musical desconectava-me do mundano mas ficava sempre perplexo, como é que alguém poderia criar tais composições. Existiam deuses entre nós comuns mortais? Esses mistérios ocupavam-me a cabeça, até que por fim desligava o pensamento e as notas entravam-me pelo corpo.
Um dia de Janeiro com pouco sol e muito frio decidi mudar a gasta rotina de almoçar em casa e fui ao restaurante típico mais perto de casa. Uma da tarde, não havia clientes, demasiado cedo para a hora de almoço espanhola. O empregado indicou-me uma mesa no canto menos interessante. Enquanto esperava pela ementa, reparo que no centro da sala havia uma mesa para dez pessoas. Pedi o primeiro e segundo prato e para beber, água natural. Seria um almoço banal de semana, a satisfação de uma necessidade básica, num restaurante onde toda a gente vai comer com o tempo contado para depois regressar ao escritório. Enquanto esperava pelo comida não tinha o que fazer, faltava-me um livro, passei os olhos pelas paredes: dois espelhos de madeira antigos, dois cabideiros também de madeira, uma pesada estante de madeira escurecida típica dos anos noventa e um extenso e volumoso bar com um balcão também em madeira e vários bancos em couro para quem quisesse sentar-se ao balcão. O empregado trouxe uma garrafa de água, um prato, talheres e um copo. Enquanto encho o copo com água mineral, entra um casal que se senta ao balcão. Ambos vestidos de negro, rasgos asiáticos, uma postura elegante: ele alto e esguio com uma sobretudo impecável; ela uma jóia exótica, cara comprida com contornos suaves, pele muito morena, óculos de lentes vermelhas, casaco escuro com um corte justo, botas em couro de salto alto, calças negras apertadas, uma fruta tropical numa planície de deserto. São lhes servidos, com muita elegância, dois Martinis, parecia a recepção de uma festa importante a que eu e o meu triste copo de água mineral não fomos convidados.
Deixei-me absorver com este casal, a elegância em cada movimento, os sorrisos discretos, as mão a dialogarem, os olhares a brilharem. Falariam de algum tema interessante. Apenas apercebi-me que a comida estava a tardar quando o empregado se desculpou pelo atraso do arroz negro. Enquanto eles bebericavam os Martinis, havia algumas gargalhas silenciosas, uma elegância quase encenada.
Chegou o arroz para fazer companhia ao coitado do copo de água. Quando me preparo para a primeira garfada, começa a entrar um grupo pelo restaurante. Todos vestidos de cores escuras, corpos esguios, todos de sobretudo, os sobretudos eram escuros, todos com ar de eruditos. Com um passo senhorial e muito à vontade, sentaram-se na mesa para dez pessoas. Falavam baixinho e apesar de não conseguir ouvir, seguramente, falariam de temas importantes. De seguida o casal do balcão juntou-se ao grupo. Seriam seguramente todos da mesma empresa. Todos bebiam vinho tinto em copos altos, nenhum tinha um copo de água, todos vestiam excepcionalmente bem. De onde era esta gente? Pareciam todos actores saídos do casting para o mesmo filme. Dei voltas e voltas às ideias e foi somente no meu segundo prato, frango no forno com batatas, que percebi. Este era o restaurante mais perto do Auditório Nacional de Espanha, estes senhores e senhoras vestidos de negro seriam todos profissionais da área musical. Que inveja me deu. O vinho tinto de copos altos que bebiam, as roupas elegantes que envergavam, os corpos esguios, os suaves gestos que usavam para conversar, a calma com que se expressavam. Tudo luzia uma felicidade constante. Falariam seguramente de temas musicais, aquela finesse só seria possível pelo eruditos assuntos que os seus corpos partilhavam. Provavelmente de Wagner, Chopin ou Beethoven. Como gostaria de estar ali. Bem sei que quando uso aquelas roupas sinto-me incómodo, ou que o pouco vinho que bebo à hora de almoço deixa-me embriagado e que não há boa comida sem um pouco entusiasmo e alguma gritaria, mas o coitado do meu copo de água, a minha roupa de estar por casa e o não ter assunto nem com quem dialogar dava-me vontades de estar ali entre eles. Também eu gostaria de ser um músico erudito com conhecimentos acima da média, entender a língua dos deuses que um dia habitaram este planeta e compuseram músicas para entreter os comuns mortais.
Trouxeram a conta, já passava da hora, dirigi-me ao balcão paguei e fui-me embora. Durante a tarde, tentei escrever, mas tinha os pensamentos naquele grupo. Fui à ponta do armário onde guardo a roupa para casamentos, funerais e batizados. Experimentei um fato, um pouco gasto mas ainda decente, cinzento escuro. Olhei-me ao espelho, de repente, parecia um maestro profissional. Ergui o indicador direito, depois o esquerdo, semicerrei os olhos e por momentos senti que estava a dirigir uma interpretação de Nocturne opus 9 number 2 de Frederic Chopin. A parede branca da sala eram as teclas de piano e as manchas escurecidas as teclas negras, abri as portas da varanda, os gerânios ao vento os arcos de violinos, o sofá de dois lugares a plateia e eu rodopiava no meio da sala orquestrando esta orquestra, enquanto a música emanava de mim. O frio de Janeiro vindo da serra de Madrid era agora dominado pelos ventos quentes do sul de Andaluzia, uma primavera repentina que aquecia cada parte do corpo. Quase no final, durante o solo de violino, no último clímax deste nocturne, tocam à campainha. As portas da varanda batem, o frio entrou forte. Eram os correios. Uma carta registada para o vizinho.
Na manhã seguinte acordei com a melodia. Li a notícia de um crime hediondo, depois peguei num livro, não havia forma de dar início à escrita. Queria regressar àquele restaurante e conhecer aquelas pessoas. Quais seriam as suas ideias sobre a peça nocturne op9 n2? Eles eruditos, grandes conhecedores, profissionais da música, poderiam ter alguma informação que aguçasse ainda mais o gosto que tenho por aquela genialidade musical. Dediquei-me a ler sobre Frederic, de apelido Chopin: a sua genialidade, a carreira, a infância e a família. Não queria parecer aquilo que era, um vulgar mortal sem conhecimentos de música clássica. Li durante várias horas, sentia-me preparado. Mas como iria incluir-me naquele grupo? Bom a roupa certamente iria ajudar mas eles saberiam que eu não pertencia ao auditório nacional. Fiz um café bastante forte, precisava de ideias.
A melhor ideia que tive, sentar-me-ia na mesa mais perto e no momento certo lançaria as minhas questões oportunas e inteligentes. Vesti elegantemente o fato cinzento ligeiramente gasto, não estava confortável mas isso agora não interessava, coloquei o relógio analógico de pulso com bracelete de couro negro, ambos ponteiros parados por falta de pilha, mas ninguém notaria, sentia a bracelete apertar-me o pulso, dava-me vigor, calcei os sapatos que levei ao último casamento, magoavam-me lateralmente os pés, mas seria apenas uma hora. Meio dia e quarenta e cinco minutos, fui até ao restaurante, entrei e sentei-me ao balcão. Olhei para o empregado, fiz-lhe sinal e pedi um Martini Bianco. Fui servido prontamente.
Sentia-me um verdadeiro erudito com todos os conhecimentos recém adquiridos de Chopin e ainda aquele Nocturne op9 num2 a ecoar na cabeça. Imaginava-me no centro do processo criativo de uma peça musical, e naquele restaurante iria encontrar a inspiração para terminar a minha grandiosa obra. Pedi ao empregado para sentar-me na mesa mais próxima daquela mesa de dez pessoas, ao que ele me respondeu - Não será possível pois a mesa mais próxima é para quatro pessoas, a única mesa que temos para uma pessoa é naquele canto - e aponta para o mesmo canto infeliz onde me tinha sentado no dia anterior. Que disparate - pensei - ergui o Martini, desabotoei o sobretudo, estiquei o braço direito, puxei a camisa para destapar o relógio escondido no punho da camisa, consultei as horas - ele ficou a olhar para mim sem saber o que dizer. Quanto mais o silêncio durava mais incómodo ele ficava. Para acabar com o seu sofrimento avancei, Bom, existe uma questão que me obriga a estar a próximo daquela mesa, é de ordem profissional e seguramente aquele grupo, que vem cá todos os dias, não irá gostar de me ver longe naquele canto. O tom da minha voz eu desconhecia, havia uma nota de arrogância que nunca tinha usado. O empregado ficou atrapalhado, coçou a barriga, moveu os olhos de um lado para o outro. Mantive a calma com a certeza de que a situação iria ser resolvida, dei um trago de Martini e voltei a consultar as horas. Até que ele sucumbiu - Penso que aquela reserva foi cancelada pode sentar-se ali - não sei se era verdade, agradeci e terminei o Martini. A partir de este momento estava claro que não era eu que tinha as rédeas da minha pessoa.
Sentei-me na mesa e pedi a carta dos vinhos. Chegou o mesmo casal do dia anterior e sentaram-se ao balcão. Enquanto percorriam com os olhos o restaurante, faço questão de lhes acenar com a mão. Eles acenaram de volta, as suas expressões denunciavam as incertezas de quem seria a minha pessoa, o empregado estava a observar a situação, fiz-lhe sinal com a mão. Um copo de Bardos, Ribeira Del Duero crianza, por favor - terminei entregando a carta dos vinhos - Esse vinho não é vendido a copo apenas à garrafa - respondeu o empregado, estava decidido em dificultar-me a vida - Pronto pode ser o da casa - respondi incomodado para despachar o assunto - um Rioja tinto ? - continuou o empregado - Sim, sim - despachei o tipo.
O grupo começou a entrar, fiz questão de erguer o meu copo alto de vinho tinto, e olhei cada uma das pessoas nos olhos enquanto movia a cabeça em jeito de cumprimento. Todos se sentiram um pouco desconfortável, e eu cada vez mais confiante. Sem sombra de dúvida, também eu era um artista profissional e já me sentia parte daquele grupo. Esperei que todos se sentassem e ficassem confortáveis para depois lançar as minhas perguntas musicais altamente eruditas. O empregado, aproximou-se da minha mesa - Já escolheu o primeiro e segundo prato? - pergunta com uma caneta pronta a escrever num pequeno bloco de papel - mas o que é que isso importa agora, pensei, que pessoa tão inconveniente. Pode ser este e aquele - respondi enquanto apontava para a ementa que tinha na mesa e despachei-o sem olhar na sua direcção. Ele tomou nota e foi-se embora. O momento mais importante estava para vir.
Depois das primeiras conversas inaudíveis pelo ruído do arrastar das cadeiras, estavam finalmente todos sentados. Pareciam uma orquestra e eu sentado na cabeceira seria o maestro. Todos recebem os seus copos de vinho, há um deles que preferiu água, muito estranho pensei, no entanto ninguém o olhou com estranheza, apenas eu. Brotaram as primeiras conversas audíveis, Bom algum de vocês conhece algum sítio aqui pelo bairro de confiança para - seria possivelmente para afinar um piano de cauda, ajustar um violino ou reparar um violoncelo; procurei pela memória se teria alguma recomendação e assim ajudar os meus colegas, mas nada me ocorria, com o copo de vinho tinto na mão direita, aproximei-me da mesa para ouvir melhor - procuro um sítio de confiança para arranjar o carro, recomendam algum? Tenho um problema qualquer na embreagem - termina metendo à boca um pedaço de pão. Bom há o senhor Fernandes - responde outro com óculos de finos aros e sobretudo negro - dizem ser bom e de confiança - acrescenta depois de dar um gole de vinho. Embreagem? Carro? Mas a quem é que isso lhe interessa? E arranca outro, com um copo vinho erguido, e uns óculos de armação negra - Bem ontem fui a um bar aqui no bairro que servem uns calamares como tapa espetaculares, e à quarta-feira têm happy-hour das cinco às seis de tarde- termina com um sorriso - um espetáculo - confirma outro. Comida? Cervejas? Promoções? Mas que conversa é esta? Onde estão as conversas que realmente importam? Onde está a música? As fugas, as tocatas e as sinfonias? Em resposta às minhas perguntas chegou o primeiro prato do meu pedido, a salada mista: um par de rodelas de tomate esverdeado, duas folhas brancas de alface a nadarem em azeite, uns bocados perdidos e enfezados de atum de lata e duas azeitonas maltratadas. Ninguém pede salada mista e muito menos em Janeiro, onde estava eu com as ideias? Dei uma garfada no tomate, azedo como se esperava, comi apenas as azeitonas.
Voltei-me para o grupo. Continuavam a falar de banalidades, que o estacionamento do auditório continuaria a ser pago mesmo para professores, ainda não havia data para o novo software entrar em funcionamento, a administração tinha adiantado as avaliações semestrais e que dada as circunstâncias os termómetros das salas de aula não podiam ultrapassar os vinte e quatro graus. Todos teciam comentários, outros faziam piadas, outros enumeravam outros assuntos. Mas a quem é que isso lhe importa? Onde estava a música? É servido o segundo prato do meu pedido, um guisado de lentilhas com alguns pedaços de carne e enchidos. Nunca gostei de lentilhas. A carne comia-se, molhei o pão no molho. Não estava mau. Acabei o copo de vinho, a cabeça já pesava. O empregado perguntou-me se desejava sobremesa ou café, um café terá de ser. Paguei. Peguei no sobretudo, dobrei-o e coloquei-o debaixo do braço, doíam-me os pés, as calças apertavam-me a barriga, regressei a casa.