É uma besta

A dona Bárbara tem quarenta e oito anos cabelo pintado de vermelho, cara redonda como uma bolacha e veste-se como uma árvore de natal. Muitas cores, muitos brilhantes e um corpo em forma de pinheiro. A dona Bárbara joga há seis anos no Euromilhões sem falhar uma semana, nem quando está de férias em Portimão, nunca perde uma ida ao quiosque. Até hoje o único que ganhou foram uns fugazes vinte euros, à semelhança de um amor de verão, muito emotivo mas de curta duração. Depois nunca mais ganhou nada, diz que a sorte a evita. Foi a mim, que me saíram os 30 milhões de prémio, logo a mim. Eu só jogava para que me deixasse em paz. A dona Bárbara para além de pirosa é bastante intimidante, fala que se desunha e não suporta ouvir algo que se pareça a “estou a adorar a conversa mas tenho de ir”.

Eu sou bastante introvertido, quanto menos pessoas olharem para mim melhor, se souberem que eu não existo feliz ficarei e a última coisa que queria no trabalho era passar vergonhas. Ninguém sabe da minha vida e mesmo assim sinto que os olhares no escritório são para lá de intimidantes. Começo a suar cada vez que dizem o meu nome e mancho uma camisa de suor em cada reunião. Tento passar despercebido mas com a dona Bárbara é impossível, todos os dias faz questão de me abordar e soltar uma grande quantidade de banalidades. A dona Bárbara quer falar mas nunca quer ouvir, e eu se pudesse nunca falaria, nesse ponto estávamos bem um para o outro. Ela despejava, espremia-se até ficar seca e eu fingia que ouvia. Houve uma vez que quase adormeci, ela deu-me uma cotovelada e continuou a esvaziar assunto. Os assuntos eram sempre superficialidades da vida, o preço das frutas, os vizinhos barulhentos, o mau estado da canalização do seu prédio, o fruteiro que é um atrevido, as longas filas dos supermercados. Temas que só lhe interessavam a ela e às paredes da sua casa, mas ela fazia questão de atirar tudo para a minha pessoa, como se eu fosse um aterro sanitário.

Acontecia quase sempre à mesma hora, a meio da manhã urge-me frequentemente uma vontade de urinar e sou sempre interceptado, sr. António Alberto tenho de lhe dizer o seguinte, a educação estaca-me o passo fico imóvel no corredor e a dona Bárbara avança com a cavalaria, então não é que as pêras subiram trinta cêntimos o quilo no Joel, e no Abílio estão ainda mais caras, mas como se isso não bastasse o Casimiro do terceiro frente, sabe aquele que já lhe falei várias vezes que é alto como um poste e bastante desagradável no elevador, entupiu a canalização do prédio, como é que é possível alguém conseguir tal coisa, não há quem me explique tal fenómeno e na entrada do prédio há um cheiro a podre que ando eu muito desconfiada que seja porque a porteira não recolhe o lixo todos os dias… e mais vinte minutos disto. Até que a semana passada durante uma destas descargas, tinha a bexiga a ponto de rebentar, apitando como uma chaleira, enchi-me de coragem e atirei-lhe com humildade, Peço desculpa dona Bárbara mas tenho mesmo de ir à casa de banho. Bom, o que veio a seguir, arrancou com uma gritaria no corredor - Senhor Alberto António eu não posso acreditar no que me está a dizer - aos gritos como se tivesse sido roubada numa repartição de finanças. No escritório todos os olhos estavam postos neste espetáculo, houve inclusive movimentações para conseguirem um melhor ângulo do que se estava a passar. As dores da bexiga esconderam-se, dispararam os níveis de ansiedade, enxurradas de suor pelas costas e eu pensava, raios parta mais a puta da dona Bárbara. Nesse momento percebi que ela era uma mulher de armas, ela conhecia tão bem a sua pessoa que sabia que não podia passar um dia sem despejar vinte cinco minutos da sua mesquinha vida e, se alguém ousasse privar-lhe desse momento, ela fazia questão de usar o seu desplante e montar um espetáculo. Em mim encontrou uma presa fácil, tipo neurótico, anafado, introvertido, com óculos, feio de cara, pior de corpo, quase careca e com fatos gastos da Zara. Era óbvio que eu não detinha o que era preciso para fazer frente à dona Bárbara. Tal como na savana o leão ataca sempre o bâmbi mais débil, eu era o bâmbi desta história. Encolhido de vergonha segui para a casa de banho enquanto ela foi para a copa encher o bucho com bolos comprados pela empresa onde eu sou um dos sócios. Bolos diariamente colocados na copa à disposição para quem quisesse um aconchego a meio da manhã, mas era sabido por todos, que a dona Bárbara empanturrava-se sem piedade. As intrigas diziam que era carente de amor e que era nos bolos que adoçava a vida. Ninguém os provava mas também não lhe diziam uma palavra, havia um temor generalizado de enfrentar a dona Bárbara.

Sim já me questionei do mesmo, se era sócio da empresa porque é que não a despedia? Dificilmente comer todos os bolos da copa seria um despedimento por justa causa e muito menos as minhas queixas de ouvir as suas banalidades, além disso a dona Bárbara era exímia profissionalmente, folhas de excell impolutas, balanços aprumados, fluxos de caixa verificados ao milímetro,  balancetes que davam gosto de ler,  declarações periódicas de IVA que colegas pediam para serem emolduradas,  porém todos dela fugiam nos corredores, festas de natal e na festa de final do ano fiscal.

Foi depois daquela humilhação que me ocorreu comprar uma besta e, como que por inspiração divina sonhei um plano: quando ela me atacasse no corredor com as suas banalidades eu levantaria, suavemente, a besta e disparava-lhe exatamente na garganta. De maneira alguma o meu objectivo seria matá-la, que eu saiba não sou um homicida, somente pretendia destruir-lhe as cordas vocais. Ainda não reuni a coragem para pôr o plano em marcha, porém todos os dias quando ela abre a goela já visualizei uma flecha a atravessar-lhe a garganta.

Depois veio o Euromilhões. Dona Bárbara fazia questão de todas as segunda-feiras dizer-me os números do seu boletim, escolhi o número 10 porque foi o número da casa onde nasci, o 25 porque foi a idade com que me separei, o 7 porque é a hora que todos os dias acordo, o 14 porque é o meu dia de anos e o 3 porque dizem é o número da sorte. Que mal é que eu fiz ao mundo para ter de levar com esta informação? Porquê eu? Então e o senhor António joga no Euromilhoes? Perguntou-me no corredor - expliquei-lhe que as probabilidades de ganhar eram muito, mesmo muito baixas, e quando ganhava balanço para desenvolver o raciocínio, ela desatou aos gritos, Mas o senhor acha que eu não mereço a sorte? -  toda a gente no escritório olhava para mim, mais uma vez, e eu em pânico sem saber o que fazer, fixei o olhar no extintor que estava na parede, que vontade de lhe dar com aquilo na cara, és sócio da empresa não a vais matar agora, a razão tranquilizou-me. Engoli a saliva, arquivei os desejos na caixa “hoje não” e para que ela se calasse disse-lhe, Vou jogar esta semana. Nunca lhe tinha visto um sorriso mas foi isso que aconteceu. Um sorriso carinhoso, parecia dez anos mais nova e havia uma beleza quase sedutora, ficou a olhar para mim com satisfação, penso que foi a primeira vez que viu em mim algum valor, Depois diga-me os seus números, e foi-se embora. Todas as segundas mostro-lhe o papel do Euromilhões preenchido e pago, ela devolve-me esse sorriso, há ali um brilho de beleza que me desconcerta e diz-me, Ai que bom boa sorte! - e poupou-me a tortura dos seus monólogos. Claro que os outros dias não me safo mas uma vez por semana já conta como felicidade.

E não é que por causa da dona Bárbara ganhei o primeiro prémio. Eu apenas gastava dois euros para ganhar vinte e cinco minutos de felicidade. Para facilitar-me a vida, usava sempre os mesmos cinco números do registo como técnico oficial de contas. E, vai-se lá saber como,  ganhei 30 milhões de euros. E as chatices que vieram?

Além da dona Bárbara mais ninguém sabia que jogava, os outros sócios da empresa e meus amigos sabem exatamente o que penso desses jogos, é atirar dinheiro à rua e criar falsas esperanças. E agora como é que faço? Uma coisa era certa, ninguém podia saber senão nunca mais iria ter descanso. Vesti, em pleno dia quente de julho, calças de ganga, sapatos de fim‑de‑semana, camisa branca, gabardina, chapéu de feltro preto, óculos de sol, e às costas uma mochila pequena vermelha oferta promocional da marca de gelados Olá, para  transportar os fardos de notas, e fui ao quiosque. Aguardei dissimulado atrás de uma frondosa laranjeira existente no passeio a dez metros do quiosque, que os clientes se fossem embora. Aproximei-me, olhei para a esquerda, para a direita, meti a mão dentro da gabardina alcancei do bolso interno o boletim, entreguei ao senhor e timidamente afirmei, É para levantar o prémio por favor, Bom dia deixe-me confirmar aqui os números . De seguida arregalou os olhos ao perceber que me tinha saído o primeiro prémio, a minha pessoa juntamente com esse boletim valíamos 30 milhões de euros, nunca ninguém me tinha cotizado com um valor e muito menos tão alto.  Por momentos pensei que me iria dar um tiro ali mesmo mas não, disse-me que aquele prémio tinha de ser levantado no departamento do jogo.

Não fazia ideia onde isso era mas procurei no telefone e lá fui eu. Cheguei ao tal departamento, entreguei a minha identificação e pediram-me um IBAN para transferir a quantia. Não seria em fardos de notas, a mochila era desnecessária. Disseram-me que vinte por cento do prémio é imposto para o estado. Que sacanas. Eu ganhei o prémio mas eles levam a sua parte.

Meteu-se o fim-de-semana e dois dias depois entraram 24 milhões na minha conta, os outros 8 milhões foram para os bolsos do estado. Que gatunos. De repente, eu, Alberto António 49 anos de idade, baixinho e gordinho, pouco interessante para o mundo, contabilista e sócio gerente da MendesVinicusSousa LDA, era, a partir de agora, milionário. Assim, da noite para o dia. E a primeira pergunta caiu como um murro no estômago, e agora Albertinho o que vais fazer da tua vida? Eu podia fazer o que quisesse, podia contratar a banda filarmónica dos Olivais para ir tocar à minha casa, podia comprar um par de Ferraris, podia comprar um veleiro, podia … mas se o fizesse, toda a gente iria suspeitar que eu era traficante de droga, ou milionário por milagre, e nunca mais teria uma vida tranquila. A minha felicidade sempre esteve na tranquilidade. Sabia que tinha de levar uma vida regrada, sem mostrar sinais de riqueza desmedida. Uma coisa era certa, nunca mais ia aturar a chata da dona Bárbara e nunca mais iria trabalhar de contabilista. Nunca gostei desse trabalho mas era o único curso que havia para estudar à noite e era isso que pagava a prestação ao banco da casa onde vivia com os meus gatos.

Vou deixar a contabilidade, digo aos meus sócios que vou fazer uma pausa, que preciso de férias, sei lá qualquer coisa. E foi isso que fiz. Eles não fizeram muitas perguntas, um pouco desconcertante parecia que me queriam ver pelas costas. Disse-lhes que voltaríamos a falar em três meses, para não levantar muitas suspeitas, e eles aceitaram sem reticências. Depois deste peso fora, fui confortar-me ao melhor restaurante da cidade: sete ostras da ria formosa para começar, uma garrafa de branco recomendada pelo sommelier, tostinhas com presunto de pata negra, cem gramas de salmão fumado selvagem do Alasca, arroz de lavagante e de sobremesa um vinho do porto com estágio de trinta anos em barricas de carvalho. 934 euros foi a conta. Paguei e quando vi o extracto bancário não dei pela falta do dinheiro. Era como se tivesse perdido umas moedas no sofá. De seguida fui ao Hotel Ritz e pedi a suíte mais cara. A senhora olhou-me desconfiada, De momento temos disponível a nossa suíte Royal com 175 metros quadrados localizada no 9º andar, varanda privada e - interrompi e disse-lhe - sim é exatamente essa que procurava, Bom são dezassete mil e quinhentos euros a noite, Com certeza - disse humildemente. A cara da recepcionista assumia expressões que ela desconhecia, Bom vou ter de lhe pedir para pagar neste momento - rematou com noventa porcento de certeza que eu seria um louco varrido. O seu tom não foi agradável mas não a condeno, a minha figura de gabardina, chapéu preto de feltro e a pequena mochila vermelha dos gelados Olá nas costas dava-me um ar assustador. Tirei o cartão de crédito e pus encima da mesa. Ela continuava desconfiada, parecia que a qualquer momento iria gritar pelos seguranças. Quando a máquina de pagamentos do cartão de crédito começou a imprimir o comprovativo, a recepcionista não acreditava no que estava a acontecer, e eu também não. Ambos perdidos nas aleatoriedades do universo navegando pelo caos da vida.  Precisei de fazer um teste para saber se isto era real, peguei no telemóvel, consultei o meu extrato bancário, e uma vez mais, fiquei com dúvidas se tinham tirado o dinheiro da conta bancária, tinha exatamente a mesma quantidade obscena de dígitos na conta. Agradeci, peguei na chave e fui para o elevador.

A suíte era gigante, três vezes maior que o meu apartamento, umas vistas de Lisboa de cortar a respiração, não fazia ideia que havia este tipo de oferta na cidade. Depois de trinta minutos de espanto abateu-se o tédio como a sonolência que vem depois de muito comer. Reinava o luxo mas não havia nada para fazer: as paredes não falavam, as vistas não sorriam, a cama era grande mas estava vazia e  as poltronas não me abraçavam. Encontrei um livro, bastante bem encadernado, capa de pele e letras com relevo, Serviço de quartos. Peguei no telefone e matei o aborrecimento com um pedido de uma lagosta suada grande, duas doses de batatas fritas e champanhe bruto Francês, desconhecia marcas por isso pedi a melhor garrafa. Não sabia que uma garrafa podia custar mil euros. Comi e bebi até ficar cheio, mas o vazio teimava em continuar. Levava todo o dia sozinho, sentia-me perdido na cidade onde nasci e cresci, nem uma conversa, uma discussão, ou um par de banalidades, apenas silêncio acompanhando-me onde quer que fosse, e nada o calava. Comecei a ter saudades dos monólogos da dona Bárbara.

Partilhar esta vida de milionário obrigava-me a abrir mão do segredo. Não tenho mulher, nem filhos, os gatos são porreiros mas não falam, não apreciam vinho reserva e não se entusiasmam com suítes de luxo, mas também sei que eles nunca se aproveitariam da situação. Tinha alguns amigos mas o que lhes iria dizer, Fernando deixa a tua vida e vem viver comigo? Ou, Victor depois do trabalho vem ter comigo e vamos viver a boa vida? Isso não era um plano. Então o que iria fazer com a vida? Caminhava em longos círculos pela suíte royal, olhos postos no chão, pensamentos sem conclusões, as vistas cantavam beleza mas eu procurava respostas no soalho. Em jeito de murmúrio falava comigo: podia viajar sozinho e fazer amigos pelo caminho, podia, mas sei lá não me apetecia; podia ir aprender golfe e jogar todos os dias, podia, mas não me apetecia; podia ir aprender a velejar e fazer regatas pelo mundo, podia mas também não me apetecia; podia escolher uma nova profissão, montar uma empresa e fazer dinheiro podia, mas dinheiro já tinha e sei lá não me apetecia. Que angústia! Porquê? Porquê é que ganhei esse maldito prémio? Tantos anos de dedicação a organizar a minha vida para ter sossego e agora isto? Desde logo imagino que devem existir vidas mais emocionantes mas a que tinha  já estava resolvida. Agora ando aqui às voltas com preocupações na suíte mais cara da cidade, com a conta bancária empanturrada de dinheiro e sem saber o que fazer. O desespero acelerava-me o passo, a angústia dilatava-me as pupilas, e a pergunta repetia-se vezes sem conta, agora o que faço com a minha vida? E um grito silencioso  percorreu-me o corpo e fiquei em silêncio durante uns minutos, a quietude preencheu-me desde os pés até à frente, levantei a cabeça e Lisboa estendia-se à minha frente. Não reagi, não tentei analisar, e por um momento parecia que a cidade falava comigo mas a voz vinha de dentro, Alberto o teu sonho. O meu sonho? Qual sonho ? Bom, em tempos quis ser ator, mas agora já não queria, também já quis ser músico, mas agora já não me inspirava, também já quis ser pintor mas aos cinquenta não me vou inscrever numa escola de artes. A angústia regressava, inspira devagar, e expira devagar. Ah, também já gostei de escrever, e a verdade é que às vezes ainda ataco o papel. Talvez fosse isso e hoje poderia começar a escrever. É isso mesmo vou escrever.

Ainda no Ritz de barriga cheia de lagosta, peguei na mochila dos gelados olá e meti lá dentro a garrafa de champanhe, aquele sitio não era para mim, abandonei o quarto, desci de elevador, pedi um táxi e fui para casa. Sentei-me na pequena mesa que tenho na marquise da sala. Peguei numas folhas de papel perdidas entre duas revistas que nunca li, encontrei uma caneta Bic praticamente nova, e ainda sem saber o que pôr no papel aproximei a caneta e comecei a escrever.

Querida Bárbara,

Nunca fui uma pessoa violenta, é certo que na adolescência matei muita formiga mas depois disso a única coisa que queimei foi as pestanas para estudar contabilidade, tempos esses que não guardo nenhuma saudade.

Porém desde que conheci a sua pessoa tenho sido brindado com a sua companhia e vem crescendo em mim, de uma forma bastante natural, umas vontades um tanto violentas, que como deve imaginar me surpreendem bastante. Ao início, questionei-me se seria por ter mudado de marca de leite mas logo percebi que a razão era pelas torturas que me pregava no corredor da empresa. Não lhe sei dizer quantos séries já vi na televisão sobre assassinos em série e nunca entendi como há pessoas capazes de tais brutalidades a sangue frio, não obstante, agora começo a entender onde podem nascer tais desígnios.

A mero título de exemplo, já imaginei atacar-lhe de muitas formas possíveis e o mais surpreendente é que não há um esforço para pensar, as ideias surgem organicamente  através de um sonho sonhado enquanto estou acordado. Há um plano em concreto tão belo, uma criação artística que não pode morrer solteira, sinto uma vontade enorme de a partilhar consigo e por isso escrevo-lhe esta carta.

Estou sentado na pequena marquise da sala, apesar de estar um dia quente e solarengo não vejo o sol, o apartamento onde vivo está orientado a norte, tão pouco há uma bonita vista, vejo prédios cinzentos com fachadas a chorarem por uma pintura, impera um silêncio que soa a melodia e um prazer ao escrever que me sinto no sítio mais harmonioso deste planeta, mesmo sabendo que estou no coração da pontinha.

A dona Bárbara, exímia profissional formada em Administração sabe o que é uma besta? Também conhecida por balestra, ou balesta, é no entanto mais conhecida por besta. Gosto da forma como essas cinco letras juntas saem projetadas da minha garganta, há uma garra, há um poder quase animal quando digo b-e-s-t-a.

A besta foi muito usada nos tempos medievais e consiste num arco de madeira montado sobre uma haste, também ela de madeira. É portanto uma peça em madeira maciça. O famoso Leonardo Da Vinci desenhou uma apesar de nunca a ter produzido, foram muito usadas no século XVI e acredita-se que as primeiras foram criadas seis séculos antes de Cristo pelos chineses. Antes de cristo Dona Bárbara, e pelos chineses há mais de dois mil anos, veja bem. Ora, a besta dispara flechas com alta precisão e tremenda potência, de aí o seu nome em latim que significa animal, fera. Hoje em dia não são tão comuns de encontrar, mas a internet, como diz o meu sobrinho, é uma coisa maravilhosa. E há dois dias os correios entregaram cá em casa uma besta feita em carvalho francês. Custou-me uma pequena fortuna, mas não é para estes caprichos que o dinheiro serve o seu melhor propósito?

Agora digo-lhe com um elevado grau de certeza, esta besta não é só uma beleza é também uma verdadeira fera. Coloquei vinte sacos de farinha sob a bancada da cozinha, ergui-a, a madeira é suave como a seda, as suas curvas são acentuadas mas macias, parecia estar a passar a mão no pêlo de um grande felino, talvez um jaguar, animal manso nas minhas mãos mas um assassino se as circunstâncias assim lhe exigissem, e com o indicador senti o gatilho metálico em aço escovado, que poder dona Bárbara, por momentos senti o guerreiro que há em mim a ganhar vida, os músculos adormecidos a acordarem, uma tensão gloriosa, senti-me forte, passei o dedo indicador e pressionei o gatilho. Furou os vinte sacos e abriu um buraco de 30 centímetros na parede. Que besta, que animal! Que prazer dona Bárbara.

Já estou a imaginar como ficará na sua garganta. Ai peço desculpa, adiantei-me demasiado rápido, imagino-a a despejar no corredor aquelas banalidades que até as paredes choram sangue de as ouvir, e nesse preciso momento levantarei a besta, a dona Bárbara fará o que qualquer animal em apuro faria, dar uns passos atrás e acabar encostada à parede, as suas pupilas ficarão dilatadas, verá a minha pessoa como nunca viu, talvez nesse momento veja o animal que vive em mim, passarei a mão direita pelo carvalho francês, farei pontaria e apertarei o gatilho. Não haverá dúvidas acertar-lhe-ei nas cordas vocais, nem um “ah” irá poder dizer. Mudará o resto da sua vida, nunca mais poderá soletrar uma palavra. Irei providenciar-lhe os melhores cuidados de saúde para garantir que não terá nenhuma outra mazela e vou exigir aos restantes sócios da empresa para ser promovida a chefe do seu departamento com um ordenado a acompanhar. No dia em que recomece o trabalho, irei fazer questão de ir trabalhar todos os dias. Todos os dias cruzar-me-ei consigo nos corredores e perguntar-lhe-ei, que tal foi o dia? Como está o vizinho? Vou deliciar-me com o seu silêncio e perguntar-lhe,  Não diz nada? Não vai gritar?  - e continuarei - Claro que não, porque a besta tirou-lhe o pio. A sua cara ficará vermelha de raiva e eu por dentro terei uma satisfação maior que a que tive quando  de pequeno fui ao circo.  Dir-lhe-ei, Não precisa de agradecer dona Bárbara, fi-lo com muito gosto. Que passe um bom dia. Seguirei o corredor e alegremente vou urinar.

Não sei o que ouve mas eu quando leio e releio estas palavras oiço passarinhos a chilrear, umas notas graves de um contrabaixo, algumas notas de piano e um clarinete tocando uma harmoniosa melodia.

Espero que esta carta a encontre bem
António Alberto

De uma vez. Veio-me assim e assim saiu. Que bonito, que sensação. O meu corpo pulsava e já ansiava a vontade de mostrar ao mundo. Mas como?  Saí de casa, fui ao antigo videoclube do bairro e pedi para imprimir a carta.  Precisava de ver no papel o que tinha acabado de escrever. Estava satisfeito. Mas espera, guarda essa folha, deixa repousar a emoção, deixa ver se a magia agarra ao papel ou se passa rápido como os amores do verão, mesmo os não correspondidos como os meus. Voltei a casa tomei um banho, brotava uma euforia desmedida, tentei apaziguar os ânimos com água fria, será que tinha feito magia ou apenas uma porcaria? Tratei de não pensar no que acabava de escrever, difícil tarefa. Vesti-me, meti a carta no bolso e saí para ir tomar um pouco de ar. Olhava para o céu, via diferentes tonalidades de azul, as cores das flores eram exuberantes, as nuvens no céu pareciam esculturas. Fui ao café do Batalha, dirigi-me ao balcão e estavam os mesmos de sempre, pedi um café. As palavras da carta eram minhas mas já não me lembrava de quase nada, tinham saído tão rápido, não penses nisso. Dois dedos de conversa com o patrão, o estado da nação, os políticos e os familiares dos políticos, os buracos do alcatrão e a chuva que não cessa de cair e conversa acabada. Deu-me a bica mas desta vez não a bebi no balcão, fui para uma mesa livre e sentei-me, não consegui esperar mais, desdobrei a folha guardada no bolso do casaco, provei o café, não estava queimado, e reli o que tinha escrito há uma hora.

Não reconhecia aquela voz, fui mesmo eu que escrevi? Ainda ouvia a sinfonia enquanto relia as palavras. Só quando terminei é que voltei ao café do Batalha. Eu recém-milionário mas a beber este café no tasco do Batalha … e que bem que sabia.

Agradeci o café, paguei e saí rua fora. Uma alegria animava-me mais forte que a cafeína, uma satisfação com tudo o que via. Caminhei pelas ruas, sentia um forte desejo de partilhar esta melodia. Não estava alcoolizado mas é certo que estava bastante alterado. Diria que por momentos perdi a consciência da minha pessoa, porque quando voltei à minha pessoa estava a receber um recibo do pagamento do envio de uma carta registada nos correios. Olho para nome, Bárbara Santiago, a dona Bárbara! Ai meu deus como foi isto acontecer? António Alberto o que foste fazer? Esperavam-me seis dias pânico e pensei, que se dane sinto-me tão bem, e saí dos correios com uma volumosa leveza e um sorriso a pensar na beleza da dona Bárbara.