Doutor encontrei a motivação que pensava perdida

Doutor encontrei a motivação que pensava perdida

Boa tarde Doutor. Estou bem, bem melhor. Sinto-me um pouco mais leve e também um pouco mais animado.  Bem sei. Bem sei que ontem o meu discurso era de largar tudo e só voltar daqui a uns anos quando as coisas estivessem um pouco melhores. Mas Doutor, hoje acordei com outra disposição, com outro ânimo. Dormi poucas horas mas foram horas reparadoras pois acordei motivado e com genica. Mas esta manhã Doutor, aconteceu-me um episódio insólito que me deixou indignado.

Sim, indignado Doutor. Esta manhã cheguei ao  escritório, à mesma hora que chego todos os dias,  nove horas em ponto. Fui à cozinha, como sempre vou, para fazer um cafezinho.  Há poucas coisas melhores na vida que um bom café pela manhã. Não aquela zurrapa queimada que se serve em quase todas as cafetarias deste país.  Abri a porta do armário onde guardo os meus pertences para preparar um café. Tenho uma balança de precisão, um moinho de café manual, um pequeno frasco de vidro onde guardo os grãos de de café e filtros de papel japonês.  Peguei no pequeno frasco de vidro e para minha surpresa, estava praticamente vazio. Havia apenas uns quantos grãos, claramente insuficientes para fazer um café. Doutor, percebi logo que tinha sido roubado.

Sim sim, eu lembro-me perfeitamente. Ontem, quinta-feira,  tinha deixado a quantidade suficiente para hoje, sexta-feira, fazer o último café da semana no escritório. Agora repare no detalhe Doutor. Detalhe não, no toque de malvadez. É que no interior do frasco estavam uns miserentos cinco grãos de café. Ora vamos lá ver Doutor, quem é que se digna a roubar grãos de café Doutor? Café Doutor, quem é que furta café?  E pior, é que o gatuno que o fez deixou lá cinco grãos de café de consolo. Consolo não, deixou lá cinco grãos de café como uma provocação. Já estou a imaginar o pensamento do gatuno,  vou preparar o meu belo café e deixo-te aqui cinco grãos de recuerdo. Doutor, o que faço eu com cinco grãos de café ? O Doutor é que é psicólogo, mas diga-me lá, este gatuno não está nada bem da cabeça pois não? Sim, eu sei que estamos aqui para falar de mim, mas é que o gatuno parece que deixou lá os cinco grãos para insinuar que eu sou um dependente de cafeína e agora teria de me aviar com cinco grãos para acalmar as ânsias do meu vício. Se fiquei ansioso? Claro Doutor, claro que fiquei ansioso. Não obviamente pela falta de café , mas pela provocação do gatuno. Cinco grãos de café Doutor?

Mas sabe Doutor, este episódio trouxe-me à memória ideias que já tinha esmiuçado na minha mente. Café Doutor, ninguém rouba café por necessidade, ninguém morre por não ter café. O Fernando,  contabilista lá do escritório, fica impossível na abstinência de cafeína mas não perde a vida por causa disso. Café não se rouba pelo amor de deus. Sinceramente posso afirmar com toda a certeza, há pessoas que roubam só pelo prazer de roubar. Roubam pelo prazer de desfrutar de uma coisa que não lhes pertence. Um prazer gratuito porque o gatuno não teve de ir para o supermercado, estar na fila, comprar um saco de plástico porque esqueceu-se de levar, perder tempo, gastar dinheiro. Nada disso, foi servir-se e já está.

Como sabe, e o Doutor saberá isso melhor do que ninguém, nesta vida para termos uma alegria primeiro precisamos de sofrer. As maçãs não caem das árvores sozinhas. Bom, cair até que caem, mas para que isso aconteça alguém teve de plantá-la, regá-la, podá-la e esperar pacientemente seis anos para depois um dia uma maçã estar pronta para ser colhida. Este é o principio da vida. Podemos procurar atalhos mas como dizia o meu avô Severino que viveu os últimos dez anos da sua vida em Abrantes, quem se mete por atalhos mete-se em trabalhos. Provavelmente poderá conseguir um par de maçãs sem qualquer esforço mas algum dia essas maçãs deixam de aparecer. Sem trabalho não há recompensa e a recompensa sabe tão bem por todo o trabalho que se teve antes.

Agora este gatuno fez um atalho, foi só abrir o frasco tirar os grãos e servir-se. Fez o seu café com o meu café e desfrutou do seu sabor sem qualquer custo. É como entrar num casamento sem ser convidado, não levar prenda, não esperar na fila para as fotos e comer e beber tudo o que lhe apetecer. Mas não fica por aí Doutor. A este primeiro prazer acresce um outro, é que nunca ninguém vai saber que foi ele que roubou o café. Nunca vai ser descoberto. É como aqueles filmes de Hollywood de assaltos perfeitos, onde os bandidos ficam com o dinheiro e nunca ninguém vai saber quem foi. Doutor, é um crime perfeito e esse prazer de prevaricar sem nunca ser descoberto faz dessa pessoa intocável. O gatuno vai caminhar tranquilamente entre nós pelos corredores do escritório a assobiar por dentro. É o fascínio do crime perfeito. Fazem uma coisa terrível, algo que elas próprias criticam outros por fazerem, jamais o fariam em público, perfeitamente conscientes que seriam severamente castigados pela sociedade, mas como nunca ninguém vai saber que o fizeram podem ter todo o proveito sem nunca terem de saborear o amargo e pesado sabor da culpa. Doutor, a culpa morre sem nunca ouvir contada a sua história.

Tenho a certeza que o gatuno para além de ter apreciado o sabor do café sentiu também no palato o prazer de que nunca será considerado culpado. O peso dessa culpa esfuma-se como o vapor do café que lhe afaga a cara. E sabe Doutor porque conheço tão bem esse prazer é que eu também faço o mesmo. Mas não é café, não vou roubar café Doutor.

Há quatro semanas quando fui à cozinha, ao mesmo armário onde estão os meu apetrechos de café, estava um reluzente frasco de vidro. O frasco estava atestado a três quartos de frutos secos. E, antes se quer de formular algum pensamento, quando tenho consciência da minha pessoa,  já estava a despejar uma mão cheia de frutos secos na boca. Poderia dizer que foi por fome, e talvez tivesse alguma fome, mas só na primeira mão cheia. As três seguintes foram apenas pelo puro prazer de estar a comer frutos secos onde não tive de empenhar esforço nem um euro das minhas poupanças.

É que repare Doutor, os frutos secos são caros, e eu, reconheço, gosto muito de comer frutos secos. É preciso também notar que os que estavam naquele pote de vidro são um cocktail de frutos secos. Na realidade havia mais passas e sementes de girassol que frutos secos de verdade. Mas ainda assim Doutor, mesmo sendo a embalagem de frutos secos mais baratas que se pode comprar no supermercado, o prazer que eu retiro de comer essas mãos cheias é muito superior ao valor comercial que essa embalagem tem. Primeiro sinto todo aquele sal a cortar-me os lábios e a língua a absorver a intensidade dos sabores que só um pequeno fruto seco contém. Como é que algo tão pequeno como um caju pode ter tantas tonalidades de sabor Doutor? É como um bigbang, uma explosão de sabores a acontecer no nosso palato. Há claramente um antes e um depois de se comer um fruto seco. Antes não há nada, depois há quase tudo.  Seguem-se as réplicas de sabor quando são trincados, com aqueles sons dos estalidos a percorrem a mandíbula. Depois vem o prazer de saber que não me pertencem de que não devia fazer isso de que não se rouba e que está muito errado de levar o que não é meu. E não pense que não pensei nisso. Pensei bastante e quanto mais pensava no que fazia, maior era a adrenalina que sentia por continuar a fazê-lo.  Tal é o prazer que sempre que entro na cozinha não consigo deixar de leva a mão ao frasco e às escondidas, atafulho a boca de tal maneira que quase sempre caem uns quantos frutos secos para o chão.

E é nesse momento que ganho consciência do meu comportamento. No momento em que estou joelhos naquele chão branco e imundo da cozinha a apanhar cada fruto seco e a metê-lo na boca. Porquê? Para apagar qualquer vestígio do crime que acabei de praticar.  Para que não fique nenhum registo da coisa horrorosa que acabei de fazer. Eu sei que é terrível, sinto-me envergonhado só de lhe estar a contar, mas para que lhe vou mentir, pago-lhe para ser sincero. E por pior que me sinta agora, sei que quando for à cozinha do escritório e estiver sozinho, a primeira coisa que vou fazer é abrir o armário para ver se o meu amigo frasco foi novamente atestado com aqueles saborosos pecados em forma de frutos secos.

Há ainda mais um prazer que tem a forma de surpresa. É que nunca sei o que o dono desse frasco me vai premiar esse dia, ontem por exemplo eram nozes. Não é dos meus favoritos, achei um pouco enjoativo depois de comer duas mãos cheias, mas Doutor entenda, o sabor das nozes é apenas umas das notas que compõe esta sinfonia de prazer que me percorre os sentidos.

Doutor, será que isto faz de mim um gatuno? Já sei que em parte sim, mas ouça-me antes de responder. Eu entendo, sou consciente de que estou a roubar.  Mas roubar uns quantos frutos secos, se bem que passas e sementes de girassol não são propriamente frutos secos, ainda assim, isso faz de mim um gatuno profissional? Agora uma coisa é certa e isso não posso negar, cada vez que entro pela porta principal do edifício do escritório, a primeira ideia que me invade a mente é saber o que vai estar no interior  daquele bonito frasco. Será que sou um gatuno compulsivo? Isso existe Doutor? Será que é desta doença que sofrem grande parte dos políticos do nosso pais? É certo que alguns são apanhados, mas condenado quase nenhum. Por isso, também eles desfrutam desta impunidade do crime perfeito.

Então, se eu padeço da mesma doença que os politicos, será que daria um bom político? A minha mãe seguramente teria uma resposta para esta pergunta. Mas Doutor, acha que deveria tentar? Como sabe ando meses à procura de uma mudança de carreira.  Bem sei que roubar frutos secos não é o mesmo que roubar o dinheiro dos contribuintes mas houve uma quinta-feira da semana passada que o frasco continha cajus e não me atrapalhei nada. Foram três belas mãos cheias de cajus pela goela abaixo. O que lhe quero dizer é que eu adapto-me,  há uma semana cajus, hoje nozes e amanhã quem sabe o dinheiro dos contribuintes e mais à frente fundos da União Europeia.

Bem sei Doutor, dispersei um pouco, mas já tou cansado de nas nossas últimas sessões falar somente da minha falta de motivação no trabalho. Mas posso dizer-lhe Doutor, e isto é um elogio, um reconhecimento do seu trabalho e como estas sessões realmente me estão ajudar. Porque hoje eu acordei com uma vontade imensa de ir para o trabalho. Há uma força em mim, um ímpeto que me faz sair da cama, tomar banho com um sorriso, caminhar com apetite de chegar ao destino, abrir a porta do edifício do escritório com ânimo, ir á cozinha com desejo e com a curiosidade de uma criança ver o que há no interior daquele frasco. Depois esperar pelo melhor momento e dar a tacada final, retirar uma mão orgulhosamente cheia de frutos secas e despejá-la no interior da minha boca. É terrível dizê-lo Doutor mas só de pensar já me apetece lá voltar. Mas o mais importante é que encontrei a motivação laboral que tanto buscava.

Pagar pela sinceridade não tem preço, ou melhor tem, mas pronto. Peso enorme este que acabei de descarregar dos meus ombros. Que maravilha. Para a semana cá estarei Doutor. Quer que feche a porta ou … Com certeza eu deixo encostada.