Às 3h30 nasceu
Para quem não sabe, eu pelo menos não sabia, uma gravidez não deve durar mais de quarenta e duas semanas. Esse limite não é imposto pela natureza mas sim pela classe médica. À minha mulher faltavam quatro dias para chegar às quarenta e duas semanas. Estava tudo bem. Mas se às quarentas e duas semanas não entras em trabalho de parto os médicos induzem o parto. Ela queria um parto o mais natural possível. Para estimular o início do trabalho do parto é recomendado pelo google e pelos médicos, caminhadas, subir e descer escadas e algum exercício físico.
Com isto explicado vamos começar. A quatro dias das quarenta e duas semanas, fomos jantar fora, fomos a pé, quinze minutos andando. O jantar correu bem, boa conversa, uma esplanada porreira, e boa comida. Regressamos a casa e no trajeto há uma subida digna de medalha. Chegamos a casa transpirados. Conversámos um pouco e fomos para a cama. De barriga cheia, adormeci em poucos minutos, e naquele momento que acabo de adormecer, acordo de repente com a minha mulher a dizer que algo se passava. Como assim algo? perguntei-lhe, já com os dois olhos abertos. Ela estava fora da cama, de pé, encostada à parede e a sua cara era de alguém que sabe que alguma coisa se está a passar mas não faz a mínima ideia do que seja. Saltei da cama e ela estava a metro e meio de distância, de pé com as pernas afastadas. Quando olho entre as pernas jorrava uma cascata como eu nunca tinha visto. Eu não sei o que é isto, diz-me ela. Perguntei-lhe, é transparente? Sim sim, parece água. Amor, rebentaram as águas liga para o médico agora. Saí do quarto disparado, sabia que em breve teríamos de sair de casa. Fui buscar a mala da maternidade que já estava pronta há mais de um mês, fui pôr as bananas e o abacate que estavam na mesa da cozinha dentro do frigorifico para não se estragarem e apanhei umas toalhas que estavam na corda a secar. Senti que me tinham chamado para ir de férias e tinha sido apanhado desprevenido. Ok, está tudo resolvido, janelas fechadas … ah espera, falta o ovo, o ovo que vai no carrinho do bebé, ah e o carrinho do bebé claro, não o carrinho não o vais usar, ok o carrinho fica, carteira, chaves de casa, vejo um livro no sofá, ah levo este livro espera mas já tens um na mala, sim mas sou bem capaz de ler os dois livros, não sejas parvo, ok o livro fica, agora sim está tudo.
Volto ao quarto e vejo a minha mulher no mesmo sítio mas desta vez sentada no chão agarrada ao telemóvel… a gravidez ensinou-me muitas coisas mas sem dúvida o mais importante foi o seguinte, entrar sempre, seja qual for a situação, com pezinhos de lã. Amor, só por curiosidade, o que fazes? Estou a ver no google se isto é mesmo as águas que rebentaram, responde-me num tom calmo e sereno de jornalista de investigação. Calma, respira… Amor, eu nunca vi as águas rebentarem só nos filmes, e isto é tal e qual como nos filmes mas com muito mais líquido. Liga ao médico. Ela olha-me nos olhos, pousa o telefone, abandona a investigação que tinha em curso e respondeu-me um pouco assustada, Ok, ok. Eu continuava pelo o quarto a tratar de coisas, atarantado de um lado para o outro, isto vai mesmo acontecer, pensava. O médico está a dizer para irmos andando para a maternidade. Diz-lhe que estamos a quarenta minutos de distância, pergunta-lhe se é preciso ir rápido e ligar os quatro piscas. O médico diz que não há pressa nenhuma, para não ficarmos a ver um filme mas que podemos ir nas calmas. Eu calmo não estava nada mas lá fomos. Ai, espera, diz ela, traz umas toalhas que isto não pára. A cascata continuava. Eu só pensava no estado em que iam ficar os assentos do carro, guardei esse pensamento para mim, mas porra é nisso que estás a pensar agora? Pronto, vamos lá, mas continuei a pensar nos assentos.
Saímos de casa, fecho a porta, dou-lhe duas voltas com a chave, pego nas coisas todas e caminho para o carro. Paro um segundo e uma noite espetacular recebe-nos fora de casa. Um mar de estrelas, uma noite amena, nada de vento, uma tranquila noite de Maio. A minha mulher com contrações, com uma toalha na mão, eu todo acelerado com a mochila da maternidade nas costas, um trólei a arrastar com a mão esquerda , o ovo e mais toalhas na mão direita e no centro um coração que batia como um tambor descontrolado. Olhei para as estrelas, abracei a minha mulher e respiramos fundo um pouco dessa calma. Ajudou.
Tralha toda dentro do carro, sentei-me ao volante. Pus a morada da maternidade no GPS, quarenta e dois minutos de viagem, liguei o carro e começámos a andar. Isto não pára de sair, dizia ela. Queres que eu pare? Não, não, continua. Ai os estofos, pensava. Entrámos na auto-estrada. Ai, ai, mais uma contração, dizia ela. Será que vamos ter de parar aqui na auto-estrada? dizia para mim, eu mal sei trocar um pneu muito menos fazer um parto na berma da estrada. Ah, já passou, já passou. Ela respirou fundo e eu também. Sentia um nervosismo a conduzir como se tivesse a fazer o exame de condução pela primeira vez, com os fantasmas habituais sentados no banco de trás a arremessarem críticas e palpites, vê la se não te espetas, não dá para ir mais rápido? não tá muito calor aqui? achas que a roupa que levas é suficiente? cuidado com a berma, tens as luzes ligadas? trancaste a porta de casa? o estado em que vão ficar esses estofos, de certeza que te esqueceste de alguma coisa em casa, viste se os pneus tinham ar? tens gasolina suficiente? Estava mais nervoso que um coelho a fugir de um cão. Duas mãos no volante às dez para as duas, dois olhos na estrada, ai os estofos, esquece os estofos e foca-te na estrada, velocidade a 100 quilómetros por hora e gotas de suor a descerem das axilas. Não havia ninguém na estrada e ainda bem porque eu sentia a estrada cheia de obstáculos, todos na minha cabeça.
A meio da viagem agarra-me uma vontade tremenda de mijar. Ao ponto que não sabia se seria capaz de controlar. Será que deveria parar na auto-estrada ? Há um instante em que penso partilhar esta minha agonia com ela, desvio o meu atento olhar da estada e quando vejo o desconforto na sua cara pensei, achas mesmo que ela precisa de mais problemas para gerir? e desisti da ideia. Se ela soubesse ficaria orgulhosa. Aguenta sem queixinhas e olhos na estrada.
Eu tentava esconder o nervosismo, e a vontade de mijar, ela estava mais calma do que eu. Não posso acreditar que isto está mesmo a acontecer, dizia ela e leu-me o pensamento naquele instante. Em breve iríamos conhecer o nosso filho. Parecia um sonho e ao mesmo tempo dava medo. Será que vou ser capaz? pensava para mim, e ela respondia, Vai correr tudo bem. A sua calma inspirava-me. Sim, também eu acreditava que ia tudo correr bem. Estávamos preparados para ser pais. O nervosismo continuava forte, a vontade de mijar também, mas o medo começava a perder terreno.
Enquanto conduzia as minhas ideias navegavam num mar de perguntas, como seria, como é que seria o nosso filho, como é que iria ser o parto, como é que seria depois do parto. Ai, mais uma contração, dizia ela. De volta ao presente. A cara dela transforma-se, o corpo dela torcia-se e eu só podia focar-me na estrada. Faltavam quinze minutos para chegarmos.
No meio de tantas perguntas, pensamentos e nervosismos havia uma questão que teimava em querer ser ouvida. A maternidade para onde íamos, tem um parque de estacionamento subterrâneo, que se paga. Pouco sei de partos, mas sei que não se fazem num dia, seriam precisos pelo menos dois ou três. Primeira opção gratuita, no exterior em frente à maternidade há três míseros lugares, mas todas as vezes que fomos à maternidade estavam obviamente ocupados. Segunda e última opção gratuita, a uns duzentos metros há um amplo parque exterior gratuito. Claro que o parque exterior era sem dúvida a melhor das duas opções para conseguir um lugar sem pagar. Mas era claro também, que não era um opção; não vou dizer à minha mulher com a bolsa rota, com contrações frequentes, sentada em cima de toalhas, Olha não te importas vamos ali à frente ver se há lugar para estacionar o carro e depois vimos a pé para a maternidade, para quê? perguntaria ela, para não gastarmos dinheiro no estacionamento subterrâneo que está mesmo por baixo da maternidade, diria eu. Se esta conversa acontecesse fora da minha cabeça seguramente iria perder a custódia da criança ainda antes dela nascer.
Esta não era uma questão daquela noite, isto já me incomodava desde as primeiras ecografias, sempre que estacionava o raio da carroça naquele labirinto debaixo do chão.
O GPS indicava cinco minutos para chegarmos. O que é que faço quando lá chegarmos? Deixo a minha mulher e vou estacionar? Deixas a tua mulher sozinha com contrações e uma toalha às duas da manhã no passeio em frente à porta da clínica ? Pois tens razão, não é boa ideia. Então e esta, estaciono só umas horas no parque até estarmos no quarto e quando a situação estiver mais calma, posso sair e vou à procura de um lugar no parque gratuito? Seria um bom plano, mas por causa do COVID se saíres da maternidade tens de fazer outro teste PCR e depois esperar não sei quantas horas … esquece. Isto claramente é um emboscada para pôr o carro onde eles querem.
Um minuto, estamos mesmo a chegar. O que é que eu faço? Quando estamos mesmo a passar à frente da maternidade, nesse sitio onde há apenas três míseros lugares exteriores gratuitos havia um amplo estacionamento livre para a minha viatura ligeira. Com o pé direito, pressionei suavemente no pedal do travão, procurei com os olhos por alguma armadilha, uma placa de proibido estacionar, ou lugar reservado a alguma entidade pública, não vi nada. Isto só pode ser mesmo uma armadilha. Voltei a passar os olhos e efetivamente podia estacionar naquele lugar. Nunca estacionei em paralelo com tanta alegria como desta vez. Acabei a manobra, puxei o travão de mão, e entrou em mim uma paz, uma calma, um sentimento de sucesso, de missão de vida cumprida. Enquanto desfrutava da minha excelência, esqueci-me por completo porque estávamos ali. Olhei e estava a minha mulher a olhar para mim com uma expressão de, mas o que é que aconteceu a este agora? Ela não perguntou e eu também não, desci à terra, à gravidez, à bolsa rota e às toalhas e disse o mais rápido que pude, vamos?
Já fora do carro. Na mão direita levo o trólei, na mão esquerda o ovo, e às costas a minha mochila de viagem, que já percorreu quatro continentes, transformada agora na mala da maternidade. Parecia que ia de férias para o Algarve com gémeos. Com os nervos nem sentia o peso, mas transpirava como se tivesse à torreira do sol. Giro o pescoço e passo um último olhar para trás e vejo o meu carro estacionado no lugar gratuito mesmo em frente à maternidade, que orgulho, agora sim, vamos lá para o parto.
Andámos às voltas à procura da entrada, ela continuava com contrações e eu carregado que nem uma mula. Encontramos a porta e entrei com toda a confiança que alguma vez se albergou na minha pessoa. Vim aqui para ser pai, pensei.
Entramos na maternidade com a alegria de finalmente ter chegado o momento. Não havia mais ninguém na sala de espera, fomos logo atendidos. Boa noite, primeira coisa têm de fazer os testes de COVID-19, rematou a senhora da guiché da recepção.
Primeiro ela e depois fui eu. Uma salinha à parte. Teste COVID, sempre aquela sensação simpática da lágrima ao canto do olho e a vontade de esmurrar o tipo que nos está a meter um cotonete até ao hipotálamo. Retira o cotonete e as lágrimas agora eram quase de felicidade pelo teste ter chegado ao fim, até que saca outro cotonete e explica-me que aquele que tínhamos acabado de fazer era o teste de COVID rápido e que agora é preciso fazer o teste PCR. Não deves jogar com o baralho todo, pensei e ele leu a minha cara. A resposta dele foi também com uma expressão facial, podemos discutir sobre isto mas não tens outra opção. Inclinei a cabeça para trás e deixei mais uma vez que entrasse pelas narinas até fazer uma biópsia de algum pedaço do cérebro. Já não era dor, era a impotência de alguém que pode fazer o que te apetecer do teu corpo e tu tens de consentir.
Saí da pequena sala com os dois testes COVID feitos, lá deixei as minhas mucosas e a minha dignidade. Tentei recompor-me até ao balcão e para me consolar tinha papelada para preencher. A minha mulher quase a parir mas antes venha a burocracia, mais vinte minutos de formulários. Terminámos a burocracia, e aparece uma senhora, talvez enfermeira, com uma cadeira de rodas a olhar para a minha mulher. E isso é para quê? pergunta a minha mulher, É para se sentar, responde a senhora como se estivesse a dar a solução para um intricado enigma. Mas eu estou bem para ir a pé, respondeu ela. Sim, mas é procedimento do hospital. Foi como uma facada na dignidade dela, sentou-se com cara de derrotada e a senhora empurrou a cadeira. Foi uma entrada vergonhosa pela maternidade. Parecia que a minha mulher iria ser internada por alguma patologia quando na realidade iria ser exatamente o contrário, iria ser a experiência mais poderosa da sua vida.
Entrámos no quarto. Estas seriam as nossas próximas quatro paredes, uma cama articulada de hospital, um sofá cama para o acompanhante, uma poltrona, uma secretária e uma cadeira. Uma secretária ? Será que alguém leva os trabalhos de casa para fazer durante o parto? A secretária resultou ser bastante útil para apoiar as bandejas com comida que traziam ao quarto.
As contrações começaram a acalmar. Ligaram o CTG, um aparelho que se aplica na parte exterior da barriga que permite saber a intensidade e frequência das contrações e o batimento cardíaco do bebé, e estava tudo bem. Às cinco horas da manhã, preparamo-nos para tentar descansar, ela na cama articulada e eu no sofá cama. Não pensei que conseguíssemos adormecer, mas tal não foi a descarga de adrenalina e nervosismo que adormecemos em poucos minutos.
Acordamos às nove horas da manhã. Fomos conhecendo as enfermeiras de turno, todas muito simpáticas. Perguntaram se estávamos bem, ligaram o CTG à volta da barriga dela para saberem como estavam as contrações. A coisa tinha acalmado, o bebé estava bem e a bolsa já se encontrava rota há mais de dez horas. Explicaram-nos que o trabalho de parto deveria começar antes de chegarmos às vinte e quatro horas de bolsa rota. Teríamos até ás cinco da tarde para dar início às contrações. Claro que da nossa parte não havia muito que pudéssemos fazer. Conversámos, comemos, lemos, e as horas foram passando.
Chegou as cinco da tarde e estava tudo na mesma, então o médico deu metade de um comprimido que continha uma hormona para estimular o início do trabalho de parto. E mais uma vez só nos restava esperar.
A hormona fez o que tinha de fazer e às seis da tarde a dilatação começou e as contrações começaram a aumentar. Ela chegou a dois dedos de dilatação em duas horas com poucas dores. Entrou o anestesista no nosso quarto, perguntou se ela iria queria a epidural, de momento não veremos mais à frente, respondeu.
Ouvimos música, conversámos, a dor das contrações pareciam ainda ser controláveis. Até que começaram a aumentar. As conversas eram interrompidas por, espera vem mais uma, ela levanta-se e dava uns passos pelo quarto, mas à medida que a contração aumentava, os passos passavam a uma dança, eu estava ali ao lado dela mas ela estava tão longe, a dançar algures pelo universo. Depois ela descia e voltava ao nosso quarto, continuávamos a conversa, falávamos um pouco, ouvíamos mais uma música e os olhos dela davam uma volta, e lá vem outra contração. As contrações intensificavam-se duravam mais tempo e repetiam-se mais frequentemente. Eu punha música e ela dançava pelo quarto respirando a contração, dançando com o nosso bebé, tocando as poeiras cósmicas em algum canto do universo. Incapaz de falar parecia comunicar com os deuses e com o nosso bebé numa dança linda de observar. A música que várias vezes ouvimos naquele quarto durante aquelas contrações, é exatamente a mesma música onde hoje o nosso bebé encontra paz quando está a chorar (música no youtube).
Entra uma enfermeira e faz o exame do toque e já estava com quatro dedos de dilatação. Perguntou por dores, segundo a minha mulher estava tudo bem e que era tudo suportável, mas nāo era verdade, umas quantas perguntas mais e tanto ela como a enfermeira aperceberam-se que já estava a ser bastante doloroso. Sim é melhor tomar a epidural, disse a minha mulher. Em minutos, o anestesista já estava na sala. Um tipo com cinquenta e alguns anos que tentava ser simpático mas claramente a simpatia não lhe corria pelo sangue. Entrou com um carrinho semelhante aos dos serviço de quarto dos hotéis, artilhado com ferramentas suficientes para fazer um transplante de coração a um cavalo. Fiquei preocupado, por momentos parecia que a iam operar. O procedimento da epidurial faz-se nas costas, que foi exatamente o sítio que me disseram para não estar. Já tinha ficado impressionado só com o carrinho das ferramentas não consigo imaginar como ficava de ver o acto em si. Fui para o outro lado e sentei-me à frente dela para olhar-lhe nos olhos enquanto lhe segurava as duas mãos. O anestesista começou a montar um Frankenstein nas costas, o pouco que via do outro lado já era assustador mas eu tentava pôr o melhor sorriso para que ela não lesse nos meus olhos o que me ia na alma. O médico pedia para ela não se mexer, mas cada vez que vinha uma contração parecia uma onda a percorrer-lhe todo o corpo e ela tinha que ficar direita como um barra de ferro. Coitada, e eu sem poder fazer nada, pensava eu , mas ainda bem que não podia ajudar, as viagens mais importantes das nossas vidas temos de fazê-las pelos nosso pés. E ela nem um milímetro se mexeu, engoliu a dor e segurou as contrações como uma guerreira.
O procedimento acabou, o estaminé foi desmontado e ficou apenas um acessório pendurado no ombro esquerdo, Assim se precisar mais é só pôr por ai, disse o anestesista. Cateter era o nome do acessório.
Quinze minutos depois, Que maravilha a epidural, disse a minha mulher. E voltou a ser pessoa. Os olhos que antes estavam quase fechados agora estavam bem abertos, já podíamos ter uma conversa, as dores agora, dizia ela, eram muito mais suportáveis. A única chatice era o CTG que estava sempre a abraçar-lhe com força a barriga. A razão de um CTG tão teimoso, a bolsa já estava rota há muitas horas e as enfermeiras queriam estar constantemente a monitorizar bebé.
As horas foram passando e a dilatação ia aumentando. Eu não tirava os olhos do monitor do CTG. Os picos desenhado pela gráfico representam a intensidade das contrações e eram cada vez mais altos. Nunca tinha visto tal gráfico à minha frente, mas o que há duas horas marcava no máximo 20 agora marcava 50. As unidades não faço ideia quais seriam, mas era óbvio, as contrações estavam cada vez mais fortes e também cada vez mais seguidas. O batimento cardíaco do bebé ouvia-se em todo o quarto, era a nossa música de fundo, era o nosso bebé a falar connosco.
Meia noite e um quarto, seis horas depois do início do trabalho de parto, chegou o momento que tanto esperávamos, a minha mulher estava nos dez dedos de dilatação. Veio o médico, sempre com um sorriso, sempre com palavras de carinho, contou um par de coisas sobre a sua família, e depois com um enorme sorriso e muita tranquilidade disse, vamos para a sala de parto? e nós olhámos um para o outro, o momento tinha chegado. O médico viu os nossos sorrisos e olhou para a minha mulher e perguntou-lhe, vamos a pé?
Foi a maior vingança possível de uma entrada de cadeiras de roda, ir pelo o seu próprio pé, sem ajuda de ninguém, com a sua força a caminhar para a sala de parto. Esse foi um dos momentos de maior empoderamento dela. Vê-la a caminhar, depois de tantas horas, depois de todas as dores, pelos corredores da maternidade com um enorme sorriso e entrar na sala de parto com a determinação de uma mulher que entrou para trazer o nosso filho a este mundo.
Na sala de parto, estava tudo preparado. Veio uma contração muito forte e o médico pediu-lhe para fazer toda a força que pudesse e foi assim que começou. De pé, agarrada aos meus ombros, eu quase já podia ouvir o nosso bebé a chorar, como é que seria? Mais uma contração mais força. Estás a ir muito bem continua faz força, dizia o médico. Ela punha todas as forças mas, pelo olhar das enfermeiras nada acontecia. Mais umas contrações na mesma posição, muita força, muita intensidade mas parecia não haver avanços. Eu não percebia nada do que se passava, concentrava-me apenas em estar para ela e dar-lhe apoio. Vamos experimentar outra posição, disse o médico. Ela sentou-se no banco e mais uma vez fiquei à sua frente. Ela dava-me as mãos e quando vinha a contração, puxava e fazia uma força imensa. Mais uma contração e mais força. O médico passou-lhe uma toalha para ela puxar quando viesse uma contração, puxa, puxa com toda a força que tenhas. E ela puxava, os músculos contraiam-se, a barriga ficava dura como uma rocha, viam-se todos os músculos da cara contraídos e os seus olhos gritavam um esforço imenso. O médico dizia que estava quase e eu só imaginava ouvir o bebé a chorar, mas ainda não foi desta. O médico disse-lhe, vou colocar uma mão para dar uma ajuda, eu não fazia a mínima ideia do que isso significa e ela acho que também não. Assim que o médico avança ela grita como nunca tinha gritado antes. E agora faz força, e ela fazia , ela punha toda a força e eu olhava para o médico, não estava a haver progressos. Mais três tentativas e tudo na mesma. O bebé não está bem encaixado não rodou o suficiente, disse o médico para as enfermeiras. Isso não soava nada bem.
Vamos mudar de posição, disse o médico. Ganhei esperança. E fomos para o chão. Eu sentei-me ao lado dela. Mais uma contração, força, ela fazia força, e pela primeira vez numa hora e meia de luta, ela chorava e ao mesmo tempo murmurava, eu já não consigo mais, está a doer muito. Só mais uma vez, mais uma vez com força agora que vem a contração, dizia o médico. Ela tentava e tentava, e os olhos soltavam lágrimas de esforço e a cara projectava a dor que lhe corria na alma . Eu olhava para a cara do médico e enfermeiros, e percebi que alguma coisa não estava bem, senti o medo a percorrer-me o corpo como um cavalo veloz e a minha cara ficou pálida. Não sabia o que fazer, e fiquei perdido a olhar pelo quarto à procura de algo, de algum sinal, quando uma das enfermeiras olhou-me nos olhos e sem pestanejar disse-me baixinho, Está tudo bem. Disse-o com a mesma segurança e determinação com que a minha mulher entrou naquela sala de parto. Espantei o medo, abracei a minha mulher e disse-lhe, amor vai correr tudo bem, Mas eu ja não consigo fazer mais força está a doer muito, respondeu-me. As lágrimas escorriam-lhe pela cara. O médico viu o poço de dor em que ela se encontrava. Ok, vamos para a marquesa por favor e, chamem o anestesista já. Ela deitou-se na marquesa, eu continuei ao lado dela. O anestesista demorou a chegar, e as contrações não esperavam por ninguém e o médico pedia-lhe para fazer força. Ela já não conseguia mais, mas dava sempre tudo o que podia. O anestesista finalmente apareceu, a minha mulher sentou-se na cama. O anestesista pegou no cateter e tentou introduzir um líquido mas o cateter estava obstruído e ela cheia de dores. Mais uns minutos para resolver a coisa, e cinco minutos depois a droga ia a caminho. Ela voltou a deitar-se.
Passado pouco tempo começou a fazer efeito e ela começou a sentir-se melhor, com menos dores, e cada contração força fazia mas nada acontecia. O médico começou a preparar a ventosa, eu sentia que alguma coisa não estava bem. Colocou a ventosa pela primeira vez, faz força agora, disse o médico, ela fez força, o médico puxou a ventosa e descolou. O médico volta a preparar a ventosa uma segunda vez, faz força força força, ela fez força, e voltou a descolar. Nunca tinha visto uma ventosa daquelas à minha frente, mas percebi que não estava a correr como esperado. O médico preparou a terceira ventosa, força, força, força, vamos força, e descolou. O pânico voltou a alastrar-se para cada centímetro do meu corpo. O que se está a passar, porque é que não está a funcionar, perguntei para mim, até que o médico diz para a equipa, vamos com os fórceps. Um arrepio percorreu-me a espinha, o medo entrou forte, sentia-me em mar alto com ondas gigantes numa canoa e sem saber nadar. Soltei todos os medos, pus a minha melhor cara mesmo ao lado dela e disse-lhe ao ouvido, amo-te muito, muito, tens uma força incrível, vai correr tudo bem.
Começou o rebuliço na sala de parto, todas as enfermeiros a fazerem coisas, um carrinho de apoio com várias ferramentas, parecia que estavam a preparar uma operação, estava a ser tudo muito rápido, toda a gente sabia exatamente o que tinha de fazer excepto a minha mulher e eu.
O médico estava pronto, já com os fórceps na mão, é assustador o tamanho que aquela ferramenta tem, pediu à minha mulher mais uma vez para fazer força, muita força. Ela fez força, ele avançou com os fórceps, ela soltou toda a dor que lhe invadiu a alma num grito que percorreu toda a maternidade. Há cinco segundos de calma e vejo o nosso bebé em silêncio, pela primeira vez na minha vida senti o universo a parar, senti uma explosão silenciosa, um novo universo acabava de se formar. Foi exatamente nesse instante que as nossas vidas recomeçaram. Mais uns segundos de silêncio passaram em câmera lenta até que o nosso filho começou a chorar com a força de um trovão. O médico passou-o para a enfermeira que automaticamente o colocou em cima do peito da minha mulher. Ele chorava com todas as suas forças a minha mulher também, a enfermeira diz-lhe baixinho, calma está tudo bem, respira. Ela respirou fundo, a calma entrou, e o nosso bebé num instante deixou de chorar e depois choramos os dois com uma felicidade capaz de preencher o universo.
Tranquilo em cima do peito da mãe foi lentamente ao encontro da mama e em pouco estava a mamar. Foi maravilhosamente perfeito, o nosso bebé a minha mulher e eu. A angústia do parto tinha desaparecido e as nossas vidas tal como tinham sido até aquele dia acabavam de mudar para sempre. Ele nasceu e nós renascemos com ele.
Muitas vezes já tinha tentado imaginado como seria, mas nunca imaginei que por uns segundos todo o amor do universo nos fosse abraçar aos três. O universo parou para o receber. Bem-vindo meu amor.
Hoje repito a frase que a minha sogra diz muito de vez em quando, é tão bom estar vivo. Obrigado pela oportunidade.