A fechadura

Depois de um almoço de família de cozido à portuguesa onde não faltaram as carnes, as couves, o arroz, o feijão, os enchidos, as batatas e as cenouras cozidas. E depois ainda vieram em formosa abundância, os doces. A bela empanturrada familiar que para sair da mesa tem de se chamar a grua ou rebolar para desencaixar da mesa. Salva-nos o café escuro e forte para não se falecer à mesa. Mais parecia uma maratona semelhante à consoada natalícia, mas prometeu minha mãe que este era o último cozido da temporada de inverno. Isto porque claro, ninguém se atreve a esta missão em dias de verão. E já que é o último então atesta-me um pouco mais de farinheira, e vamos lá em mais uma garfada que ainda não desmaiei. Semelhante ao brunch este é um lunchner, um lunch que também vale por dinner.  

E exatamente neste ponto, podia dar-se o dia por feito. Tão simples como rodar para o sofá, onde a sesta seria mais do que certa. Adormecer e desligar a máquina para que o corpo dedicasse todos os seus recursos em dar conta da empreitada alimentícia. O corpo agradecia e o fígado mais ainda. Como aquele reiniciar do computador tão necessário por vezes. Seria  bom, mas quando se tem um catraio na tenra idade, tais desejos não são mais do que pura fantasia, como dizia o outro, “eu também queria muita coisa”. Entre o querer e o ter está a ilusão do ignorante que todos somos, de querermos o que não temos porque não sabemos que já temos tudo o que precisamos.

Feito o almoço era tempo de ir para casa. Lá fui eu mais o pequeno na viatura. Eu atestado como um pote e a criança atestada de sono. À primeira curva já estava a dormir, pelo retrovisor entrava-me a inveja de também me querer apagar. Onde estão os tão prometidos carros autónomos para eu bater uma bela sorna enquanto a viatura nos leva a casa? Ele dormia ferrado, e eu conduzia em esforço. Pelo caminho imaginava a bela sesta que quando a casa chegasse faria no sofá. Claro que na chegada, o pequeno acorda com a força de um peixe que luta pela vida fora de água e lá foi por água a tão desejada sesta no sofá da sala. Arranca que são três da tarde e o dia ainda é uma criança. 

Parecíamos o reflexo um do outro: ele fresco recém-acordado e eu velho quase-dormido. Então lembrei-me, vamos aparar as sebes do jardim. Ele adorou o plano. Fui buscar o escadote, e comecei a tarefa. Ele prontamente se ofereceu para apanhar os ramos cortados. Não podia ter corrido melhor, aparei as sebes e ele colocou-as no caixote e juntos deitamos toda aquela matéria orgânica para os, sempre famintos, bichos que vivem no contentor da compostagem. Demos um aperto de mão, foi um verdadeiro trabalho de equipa. Não podia estar mais feliz. De seguida levei o escadote para guardar na arrecadação. Quando vou a entrar o escadote, grande mas leviano por ser feito de alumínio, bate suavemente na porta da arrecadação. Nada preocupante, mas houve um barulho metálico que se seguiu de outros dois mais baixinhos. Quando olhei não podia acreditar, a ponta do escadote bateu exatamente na chave da arrecadação que estava na fechadura. O metal comido pela ferrugem e o universo fizeram o resto, a chave partiu-se e uma parte ficou dentro da fechadura. Qual é a probabilidade de isto acontecer? Esta foi a sorte que me saiu no final do domingo. 

Não podia fechar a porta da arrecadação porque senão não a podia abrir. Tinha outra chave mas a fechadura estava ocupada com a velha chave moribunda e partida. Tinha eu de mudar de fechadura?  O dia prosseguiu, dar banho à criança, preparar o jantar e enquanto fazia estas tarefas sentia uma voz distante da bricolage a chamar por mim. Soava a maldição, ou a prova de superação. Enquanto adormecia a criança, eu matutava, amanhã segunda-feira tenho de tratar disso. Para muitos seguramente seria uma operação banal para mim soava a tormento e pior é que não me podia servir da tão habitual procrastinação para adiar tal missão. Enquanto o tempo passava a porta da arrecadação continuava escancarada e aberta para toda a espécie de bicharada.

No dia seguinte, segunda-feira,  fiz pequeno-almoço, marmita para a criança levar para a escola, levei-o à escola e sem mais demora fiz-me à estrada e enfrentei a loja de bricolage. Muitas ferramentas, peças e peçinhas, para mim tudo quinquilharia . Lá deambulei de corredor em corredor, pedi ajuda aqui e ali, até que me disseram. “Ora, o que as pessoas fazem normalmente é trazer a fechadura antiga para vermos qual é igual ou a mais parecida”. A melhor notícia que um procrastinado poderia ouvir. Senti um alívio pela tarefa ficar relativamente adiada. O objectivo que me tinha sido entregue parecia relativamente simples, retirar a velha fechadura que continha a chave encravada. Sinto-me capaz para a tarefa.

Antes de proceder à missão, tentei transformar as minhas desventuras em alegrias para outros: contei o sucedido no grupo de whatsapp familiar, alguém certamente se iria rir com a minha desgraça. E riram-se mas, o meu pai deu-me um bom conselho: retirar o bocado de chave que ficou dentro da velha fechadura e assim problema resolvido. O conselho era bom porque resolvia-me o maior problema de todos, não teria de lidar com a substituição da fechadura. Que, apesar de nunca ter feito, não parecia tarefa nada fácil, menos ainda para um fugitivo de bricolage como eu.

Comecei a tarefa, claro que sou um precário no que se refere ao arsenal de ferramentas que possuo: um berbequim; um jogo de chaves de fendas; spray lubrificante; martelo e uma extensão elétrica. Ou seja, como costuma acontecer neste tipo de situações, nenhuma ferramenta útil para o empreendimento que se apresenta.

Sem ferramenta em que pegar, rendi-me ao que o corpo me deu, um par de olhos: observei a fechadura e os restos mortais da chave nela contidos e observei como seguramente um boi admira um palácio, sem um pingo de conhecimento mas também sem uma gota de preocupação. E alguém, até hoje não sei quem, me sussurra ao ouvido: e porque não usas palitos para retirar a chave?  Não pensei nem questionei, era a melhor pista que tinha. Tentei e fui tentando e lá avançou um pouco, e mais outro pouco, depois regredia, voltava a avançar, mas a coisa não se resolvia, e o bocado de chave dali não passava. Apenas um milímetro daquele pedaço de metal assomava-se para fora, a testa e as pálpebras se viam, mas o tronco e resto do corpo não havia forma de sair. Quando mais força fazia mais a chave no buraco se escondia. Tentei de vários ângulos, parti vários palitos mas a chave nem por nada queria sair. 

E outra vez volto a escutar outro sussurro: usa o óleo lubrificante para facilitar a vida da chave falecida. Que brilhante ideia! Apliquei um pouco do dito spray. Fiz mais umas tentativas, parecia que ia ser desta mas ainda faltava um bocado. Até que a chave desliza e além das pálpebras vejo-lhe todas as suas partes, todas as suas curvas, as suas entranhas, as diferentes concavidades que tinha, e a modo de salto como numa tentativa de voo, como um pequeno melro que deixa o seu ninho, a decapitada chave deixa a fechadura e lança-se num voo para rapidamente cair a tombos pelo chão. Nunca tinha sentido tanta alegria de ver um pedaço de metal a voar.