A Emboscada

Não é mentira nenhuma e na minha cabeça não se fala de outra coisa, alguém está a dar cabos das nossas alfaces.

A Emboscada

Não é mentira nenhuma e na minha cabeça não se fala de outra coisa, alguém está a dar cabo das nossas alfaces.

Plantei três alfaces e passado uma semana tinham desaparecido.  Nem uma folha, nem o talo ou se quer uma migalha. Não restava nada. Um larápio no meu quintal? Ou seria o vento?  Não podia desistir do meu plano de um dia colher três alfaces suculentas.

Peguei no carro, fui ao viveiro e comprei mais três pés de alface, paguei, agradeci e vim-me embora. O mistério viajava comigo. Cheguei a casa, abri três pequenos buracos, no mesmo sitio das anteriores, e plantei as três novas pequenas e viçosas alfaces. Reguei-as com um pouco de água. Olhei fixamente para as três, todas saudáveis e todas do mesmo tamanho. Agora só me restava esperar, voltei para dentro de casa.

Acordei no dia seguinte e ali estavam as três novas alfaces no mesmo sitio onde as tinha plantado. Um pouco de água e continuei a minha vida. No segundo dia, tudo na mesma, as alfaces no mesmo sítio e eu com o mistério às costas,  para onde foram aquelas três primeiras alfaces que plantei? No terceiro dia saí de casa e vi um gato pela rua que caminhava com um ar suspeito. Assim que viu o meu olhar desconfiado correu logo para de baixo de um carro. Muito suspeito, pensei. Este foi o gato que há duas semanas ofereci comida como gesto diplomático para dar início a uma relação amistosa e nem bola me deu. Bom, meu amigo não quer ser, pensei, mas será que anda a fazer saladas com as minhas alfaces? Vou tomar nota no meu caderno, primeiro suspeito, gato da rua que desprezou a minha tentativa de amizade.

Passei o resto do dia no trabalho ansioso, fazendo as tarefas de escritório a pensar no gato. Seria este gato um gatuno? Estaria eu a trabalhar enquanto o gato se deliciava com os suculentos rebentos de alface? Assim que acabei o trabalho rumei diretamente a casa sem passar pelo café para saber das fofocas locais. Hoje teria que viver sem saber da vida dos outros, já tinha bastante com a minha. Seria o gato a chave deste mistério?  Cheguei a casa, fui à horta e estranhamente os três pés continuavam verdes, frescos e viçosos como antes. Talvez o gato não fosse o culpado.

Terceiro dia, acordo de manhã, antes do pequeno-almoço, vou até à horta e as alfaces continuavam tal como as tinha plantado. Talvez tivessem crescido um centímetro, mas faltavam-me evidências para proferir tal afirmação. Mais um pouco de água e fui para o escritório,  sempre com o incómodo às costas de não saber como aqueles  primeiros três pés de alface tinham desaparecido.  Cheguei a questionar a minha sanidade mental perguntando à minha esposa Ofélia, se efetivamente tinha plantado aquelas três alfaces que desapareceram, ela confirmou . Não estava senil, mas então para onde foram as alfaces?

Quarto dia, outra vez pela manhã, antes das papas de aveia do pequeno almoço, vou junto das alfaces e um dos pés estava com menos folhas e com um ar muito pouco saudável. Não estudei botânica mas este filme já eu vi muitas vezes. A sombra do passado preencheu-me por dentro. Durante vários anos, pelos diferentes apartamentos onde vivi, muitas plantas morreram e sempre atribui os óbitos à minha incapacidade. Claro caso de homicídio por negligência. Por outras palavras, assassinato por descuido. Não foi preciso o tribunal decretar a sentença, eu próprio tomei a iniciativa de afastar-me de floristas e viveiros de plantas por vários anos. Foi triste contudo necessário. Porém, o confinamento que nos afastou das pessoas, aproximou-nos, a alguns, da natureza e foi assim que ganhei coragem para sarar as feridas, e limpar a culpa; plantei três alfaces, três brócolos e três alhos franceses. Agora o passado voltava como uma nuvem pesada e escura. O que é que tinha acontecido aquela alface? Porque é que faltavam folhas ? Pouco sol ? Pouca água ? Demasiada água? E onde estavam aquelas primeiras três alfaces que plantei ? O vento não faz destas coisas, aquele gato também não e as moscas muito menos.

Era bastante óbvio, um crime tinha sido praticado e cheirava a mistério por todo o lado. Fui junto das alfaces à procura de vestígios, e nada, procurei testemunhas, apenas formigas remetidas ao silêncio que não proferiram uma única palavra, cúmplices seriam. Coloquei-me estrategicamente atrás do estendal carregado de roupa, bem escondido, a observar as alfaces, dizem que o larápio sempre volta ao local do crime. Durante trinta e cinco minutos e nada. Já se fazia tarde, fui para o trabalho e só ao meio-dia, quando recebi uma chamada preocupada da minha esposa Ofélia, percebi que não tinha comido as papas de aveia do pequeno-almoço. O mistério ocupava-me tanto a cabeça como o apetite.

O dia passou devagarinho. Fiz metade das tarefas que deveria ter feito no escritório, tinha a cabeça tomada por perguntas sem resposta.

Cheguei a casa, jantei com a minha esposa, ela falava-me de assuntos, mas o meu assunto já estava ocupado, não havia espaço para mais nada.

Vesti o pijama como um soldado que despe a farda, já sem esperanças de resolver o enigma, meti-me na cama, desisti da minha missão, peguei num livro e desliguei do assunto.  O corpo estava em repouso mas a cabeça não parava. Todos os pensamentos acabavam em becos sem saída. Até que, como uma luz divina, às dez e meia da noite, a solução iluminou os meus pensamentos, já sabia quem era o culpado. Saí da cama, calcei as chanatas, peguei no telemóvel, fui até à cozinha e saí pela porta que dava para o exterior. A noite já tinha engolido a horta e a lua não estava de serviço. Não se via nada, mas eu já sabia quem era o inimigo e sabia onde andava.

Aproximei-me da horta em silêncio, com passos lentos e cautelosos, meti a mão no bolso direito das calças do pijama e retirei o telemóvel. Apontei o telemóvel para as alfaces e acendi a lanterna. Naquela fracção de segundo antes da lanterna dar luz,  senti que podia estar a viver uma teoria conspiratória inventada e alimentada por mim e com um seguidor apenas, eu mesmo. Comecei a preparar-me para o fracasso de não encontrar nada nem ninguém.

Nada disso, há lá melhor sabedoria que aquela que vem das nossas vísceras, espontaneamente dos nossos instintos. Um bando de onze lesmas estava num banquete quase tão grande como aquele que estão a ter as farmacêuticas neste momento. Havia uma que estava a repimpar-se em cima da folha de uma alface. Não lhes dei hipóteses.

Uma delas ainda olhou para mim com cara de quem ia começar a correr, mas fui mais rápido que essa e que todas as outras. Estiquei o braço, alcancei o  pequeno sacho que temos para as hortícolas e comecei a catapultar cada uma delas para os terrenos vizinhos mais longínquos. Seguramente algumas viajaram apenas dois metros mas outras chegaram aos cinco. O importante é que todas foram enviadas para lá do muro da nossa casa.

Acredito que a consistência ranhosa das lesmas, e em concreto destas larápias, lhes tenha amparado a queda e a sua condição hermafrodita lhes permitirá serem felizes noutro lugar.

Voltei para dentro de casa, fechei a porta e regressei à cama com o sentimento de triunfo a correr-me pelas veias.

Ofélia, esta noite ganhamos! Mas não nos enganemos, há mais, há muito mais como estas. A luta continua e amanhã à noite lá estarei onde elas menos me esperam.

Ofélia dormia mas eu sei que estaria orgulhosa. Boa noite meu amor.