A chuva que molha é a que eu preciso

Ela caminha, chove torrencialmente, mas não se preocupa, é chuva apenas água, a água que me lave, a água que me acorde. Caminha pelo passeio, casas pequenas, portões abertos outros fechados, persianas corridas, jardins cuidados, casas esquecidas, fachadas sofridas, e ninguém pela rua. Chove torrencialmente e estamos em Janeiro, ai a porcaria do mês de Janeiro, é talvez o pior mês do ano, muita chuva e muito frio, o início de algo não escolhido, não faço ideia do que estou a fazer, essas rédeas já foram, esse cavalo há muito que corre livre. É a inércia que me leva, é a falta de motivação que me motiva. Chuva, e mais chuva, a chuva nunca acaba, muita chuva no caminho, a melhor companhia que tive nos últimos trinta dias. Ela morreu.

Ninguém o esperava mas ela morreu. E esse pensamento vai-se, por uns segundos, viaja pelas nuvens, finalmente ouvia a chuva a bater-lhe na cabeça, os pés a ficarem finalmente empapados de água, isso era real, estava a acontecer. Os pés estavam molhados, as calças colavam-se às pernas, a chuva caía mesmo, não a podia evitar, não havia um abrigo, e mesmo que quisesse não podia ordenar para que parasse. A morte também era real, tinha acontecido bem perto, não a viu chegar, mas a morte entrou pela sua porta, viu os casacos na entrada, os dois chapéus de chuva, as chaves penduradas, caminhou pelos corredores, viu praticamente todas as fotografias da parede e as que estavam nas molduras do aparador da sala, as pinturas a aguarelas penduradas no quarto, os livros nas mesas de cabeçeira, o tapete novo na entrada do quarto, o caixote com roupa suja na casa de banho, a pilha de pratos do lava-loiça, e depois com toda a naturalidade levou-a. A morte era real, mas a morte dela não era. A morte existe, está por todos os lados, mete-se em muitas casas, há quem viva com ela, e a morte mata todos os dias, mas a morte da Carla não aconteceu, no entanto, o mais estranho é que a Carla não estava. E a chuva caìa, a chuva não parava de cair, chovia torrencialmente e ela não queria que a chuva alguma vez parasse de cair.