1910: O Fim da Monarquia Acontece na Praia dos Pescadores, Ericeira
5 de Outubro de 1910. Na Ericeira, D. Manuel II embarca discretamente na Praia dos Pescadores. A monarquia portuguesa chegava ao fim.

Ericeira, 5 de Outubro de 1910. A vila acorda em silêncio. No alto da falésia, centenas observam, entre respeito e emoção, a família real portuguesa descer à Praia dos Pescadores. O rei D. Manuel II, a rainha D. Amélia e a rainha-mãe D. Maria Pia caminham em direção a um pequeno barco de pesca, ironicamente chamado Bom-Fim. É dali que partirão para o exílio. O mar está calmo, mas o país acaba de mergulhar num novo capítulo: a República acaba de ser proclamada em Lisboa.
Este momento simbólico marca o fim de quase oito séculos de monarquia em Portugal — e o início de uma nova era. Mas como se chegou aqui? E por que razão a fuga aconteceu precisamente pela Ericeira?
As Tensões que Abalaram a Coroa
No final do século XIX, Portugal atravessava um período de grande instabilidade. O regime monárquico estava fragilizado por crises políticas, económicas e sociais. Entre o povo crescia a sensação de que o sistema já não respondia aos problemas do país.
De 1820 a 1910, Portugal viveu sob o modelo de monarquia constitucional. Na prática, o poder oscilava entre dois partidos — o Regenerador e o Progressista — cujas diferenças ideológicas eram mínimas. Instalou-se um bipartidarismo rotativo, onde os governos se alternavam sem grandes mudanças de rumo. Essa “dança de cadeiras” política gerou descontentamento, tanto nas zonas rurais, como nas cidades. A população começava a sentir-se esquecida e desiludida com a elite política.
Foi neste contexto que o Partido Republicano começou a ganhar força. Nascido à margem do sistema, começou por dar voz aos descontentes, defendendo uma ruptura com o regime e a construção de uma nova ordem política baseada na República, no progresso e na justiça social. Nas cidades, especialmente em Lisboa e no Porto, intelectuais, professores, comerciantes e operários juntavam-se ao movimento. Nas urnas, os republicanos começavam a conquistar deputados; nas ruas, preparavam o passo seguinte: a revolução.
A situação agravou-se com a governação do rei D. Carlos I, marcada por instabilidade política, sucessivos governos e crescente autoritarismo. Em 1907, a situação agravou-se quando o rei D. Carlos I, nomeou João Franco como chefe de governo com poderes alargados, o rei procurou restaurar a ordem — mas acabou por alienar ainda mais a oposição.
A tensão atingiu o ponto máximo a 1 de fevereiro de 1908, quando o rei D. Carlos I e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe foram assassinados por Manuel Buiça e Alfredo da Costa em Lisboa, num atentado a céu aberto no Terreiro do Paço. Subiu ao trono D. Manuel II, filho mais novo do rei com apenas 18 anos e sem qualquer preparação para governar.
D. Manuel II: Um Rei Solitário num Trono Instável
Apesar das circunstâncias trágicas, D. Manuel II iniciou o seu curto reinado com a promessa de reconciliação. Demitiu João Franco, reabriu o Parlamento e procurou apaziguar os ânimos. Mas era tarde. A monarquia já não conseguia mobilizar apoio popular, e o movimento republicano estava mais organizado do que nunca.
Nos bastidores, preparava-se uma revolução. A 3 de outubro de 1910, o assassinato do médico Miguel Bombarda, figura proeminente do republicanismo, foi o catalisador. Na madrugada de 4 para 5 de outubro, tropas insurretas saíram às ruas de Lisboa e não encontraram grande resistência. No Tejo, o cruzador Adamastor, comandado por oficiais republicanos, bombardeou o Palácio das Necessidades, residência oficial do rei.
A Fuga: De Lisboa à Ericeira
Inicialmente, D. Manuel II recusou fugir. Terá dito: “Se a Constituição não me manda senão deixar-me matar, cumpri-lo-ei.” Mas, com o palácio sob fogo e a revolução a ganhar força, foi persuadido a abandonar Lisboa.
No início da tarde de 5 de outubro, o rei seguiu para Mafra, onde se encontravam as rainhas D. Amélia e D. Maria Pia. Passou ali a sua última noite em território português, no Palácio Nacional de Mafra. No dia seguinte, ao ver a bandeira da República hasteada na vila, percebeu que a resistência era inútil.
Decidiu então partir para a Ericeira, onde o iate real “Amélia” aguardava ao largo. A viagem foi feita por estrada, com escolta reduzida. Chegados à vila, desceram discretamente à Praia dos Pescadores, onde os pescadores locais cederam pequenos barcos para os levar até ao iate.
Entre eles, um barco chamado Bom-Fim ficou para a história. Eram cerca de 16 horas quando a família real deixou Portugal. Pouco depois, a bordo do iate, seguiram para Gibraltar — e, daí, para o exílio em Inglaterra.
O Exílio Real: Inglaterra e a Despedida Silenciosa
Recebidos com discrição e respeito pela família real britânica, D. Manuel II e D. Amélia instalaram-se em Richmond, nos arredores de Londres. Mais tarde, mudaram-se para a casa senhorial de Fulwell Park, em Twickenham, onde o ex-rei viveu até à morte.
Em 1913, D. Manuel casou-se com Augusta Vitória de Hohenzollern, mas o casal não teve filhos. O ex-rei nunca renunciou oficialmente ao trono, embora também nunca tenha tentado restaurá-lo pela força. Acompanhou de longe os acontecimentos em Portugal, incluindo as tentativas frustradas de restauração monárquica.
A 2 de Julho de 1932, com apenas 42 anos, morreu o último rei de Portugal - D. Manuel II - subitamente, vítima de edema da glote. Faleceu na sua casa de exílio em Twickenham, nos arredores de Londres, Inglaterra. Curiosamente, no mesmo bairro onde nasceu a sua mãe Dona Amélia de Orleães
O corpo de D. Manuel II foi transladado para Portugal e sepultado no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa.
No mesmo mês da queda da monarquia, exatamente 11 anos depois, em Outubro, em 1951 Dona Amélia de Orleães - a última rainha de Portugal - faleceu, em França onde estava exilada, e as suas últimas palavras “Sofro tanto! Deus está comigo. Adeus. Levem-me para Portugal!”. O seu corpo foi transladado para a Igreja e Mosteiro de São Vicente de Fora, junto dos seus filhos e do marido, rei D. Carlos.
O Fim de uma Era
A fuga pela Ericeira simboliza o encerramento de um dos capítulos mais longos da história portuguesa: quase 800 anos de monarquia. A 5 de outubro de 1910 começou um novo ciclo na história de Portugal e foi aqui, na
Praia dos Pescadores da Ericeira, que, simbolicamente, a monarquia terminou e começou a República.
Hoje, quem caminha pela Praia dos Pescadores talvez não imagine que foi ali, em silêncio e sob o olhar discreto de uma vila, usando uma caixa de peixe de degrau para subir ao bote, que o último rei de Portugal partiu para o exílio. O Bom-Fim, como o próprio nome anunciava, foi o barco que marcou esse adeus.
